QUARTZO FUMADO

I

O tempo não pára, esgota-se!

E naquela tarde, esse esgotamento ganhou um peso tenebroso.

O frio ainda não se fora embora, dificilmente iria numa cidade normalmente gélida no Inverno e amenamente fresca no Verão. A Primavera estava a chegar, mas ainda se viam resquícios da neve a derreter nalguns cantos sombrios da cidade.

O Sol brilhava mentiroso, proclamando um calor que só perante anormalidades provocadas pelas alterações climáticas é que seria algo semelhante aos climas quentes do sul da Europa. O vento soprava tranquilo, seco com tendência a tornar‑se desconfortável. A água no Rio Neva prosseguia na sua corrente calma, agora que regressara ao estado líquido e deixara de ser uma perigosa pista de gelo. O verde da vegetação respondia aos raios solares com brilhos viçosos, alegres, anunciando a chegada das andorinhas, quase fazendo esquecer que à volta se erguia a famosa cidade dos czares, São Petersburgo. Mikhail observava a Catedral Smol’nyy na margem oposta com o astro-rei atrás a descer para o horizonte, um monumento secular que se impunha para lá das árvores e da natureza bonita em contraste com o quadro citadino atrás dele com blocos habitacionais de betão.

O céu azul em fundo tornava a visão parecida com uma pintura, Mikhail quase se poderia sentir um privilegiado, não fosse a novidade que se despenhara na sua vida. Passara a última hora a chorar, ali, sozinho, quase hipnotizado pela corrente do Neva. Nem se recordara da última vez que chorara, talvez em criança, talvez quando ainda nem meia dúzia de anos completara. Agora estava com trinta e cinco e as lágrimas voltaram porque a sua vida recebeu a notícia que lhe iria provocar um rombo catastrófico na sua existência. Lágrimas que escaparam à atenção de quem por ali passasse, não que os russos fossem um povo afectuoso, na verdade eram tão frios quanto o gelo siberiano, mas as lentes escuras que protegiam os olhos de Mikhail do entardecer também lhe ocultavam a tristeza e a humidade. Sentia-se como se tivesse ido ao médico e lhe tivesse sido diagnosticada uma doença fatal, algo que até preferia em alternativa à realidade, uma vez que esse era o destino da irmã.

Uma hora antes, Mikhail vinha a caminhar pela margem do rio, pelo largo passeio pedonal entre o rio, os arbustos e as árvores. Caminhava automaticamente, ainda a pensar nas palavras de Ekaterina e a permitir-se finalmente a que as lágrimas lhe escorressem do rosto. Acabou por estacionar num banco de pedra e ficar a olhar para o vazio.

Nas duas horas que antecederam esta, ele estivera com a irmã naquela que foi a conversa mais horrível, pesada e triste que alguma vez tivera na vida.

Ekaterina era três anos mais velha, uma mulher linda, sorridente, humorada e pouco russa, ou seja, calorosa. Os dois irmãos tinham uma cumplicidade impenetrável, agiam como se fossem gémeos, bastava-lhes olhar um para o outro para que soubessem o que pensavam, o que sentiam, o que iriam dizer. Os relacionamentos de ambos com namorados começavam sempre periclitantes, uma vez que nem eles nem elas se sentiam confortáveis com a ligação forte deles, o que não passava de pura inveja por não conseguirem um elo espiritual tão forte como o que unia os irmãos. Contudo, tanto Mikhail como Ekaterina acabaram por encontrar as suas “caras-metades” que viviam bem com isso. Mikhail vivia com Svetlana, uma moscovita da idade dele com um cabelo tão escuro como o dos irmãos era louro, iam casar no final do ano. Por seu turno, Ekaterina vivia maritalmente há oito anos com um português de cinquenta chamado Tiago que viera para a Rússia duas décadas antes.

Mikhail recebera o telefonema pela manhã, uma chamada da irmã a pedir para se encontrarem depois do almoço. Ela não levantara uma ponta que fosse do véu que tapava o tema, mas ele pressentiu que algo sombrio se avizinhava. Já não conseguiu fazer nada de jeito no emprego, em toda a manhã, na sua função de gestor de fortunas. Almoçou qualquer coisa, tal como fazia sempre, algo que a irmã condenava e o alertava que isso ainda lhe provocaria problemas de saúde. Só que a saúde que ficou lixada não foi a dele. Merda, antes tivesse sido. Ao invés, o alvo fora a irmã, médica, um exemplo de vida saudável, tomava todos os cuidados com a alimentação, evitava uma vida sedentária e planeava ser mãe. Talvez até já o pudesse ser, não tivesse sido o aborto espontâneo que levantou as dúvidas que levaram aos exames que acabaram por revelar o…

— Tenho cancro. — disse-lhe quase sem respirar, quando se encontraram no seu gabinete no hospital. As palavras saíram-lhe com uma expressão de quem dizia uma piada de mau-gosto.

Mikhail foi apanhado de surpresa, mal conseguiu encaixar o impacto da notícia e tentou verbalizar algo, talvez questionar o tratamento, saber algo mais… Mas, eles comunicavam sem precisarem de falar e ele sentiu que era pior que o mau que já parecia.

Ekaterina dirigia o departamento de radiologia naquele hospital. Tinha um gabinete só para si, o que lhes permitia toda a privacidade para aquela conversa. Ela poupou-lhe a procura das melhores palavras.

— É maligno, Mika. — rematou, sentando-se na sua cadeira, agastada com a sua própria realidade.

— Mas, há tratamentos! — exclamou Mikhail, atónito, com uma certeza que não tinha, nem conhecia. — Não há, Eka?

O silêncio dela foi dilacerante. Ambos faziam um esforço tremendo para não desabar em lágrimas no ombro do outro. Ekaterina acabou por explicar:

— Se fizesse tratamento, talvez consiga viver…

— Se fizeres o tratamento? — questionou indignado.

Ela levantou a mão num gesto a pedir que esperasse e prosseguiu:

— Talvez viva uns… três anos. — Mikhail ficou lívido. Ekaterina leu toda a amargura no rosto do irmão, mas manteve-se forte. — Sem tratamento…. — calou-se.

— Isso não é sequer hipótese, Eka. Tu vais trat…

— Eu é que decido isso, Mika! — travou-o com demasiada dureza. — A doença pode roubar-me a vida, mas não decidirá a forma como quero continuar a vivê-la.

— Mas…

Ekaterina não deixou o irmão argumentar.

— Sou médica, conheço os tratamentos, os efeitos… Não quero passar o tempo que me resta a sobreviver, a morrer aos poucos numa luta para ganhar mais um dia.

Mikhail sabia como ela era decidida e firme, tinha consciência que já tomara a sua decisão, não procurava conselhos, por isso limitou-se a abanar a cabeça discordante. Como não valeria a pena insistir, questionou:

— O Tiago já sabe?

Ekaterina anuiu e completou:

— Foi o primeiro a quem contei.

— E?

— Ficou em choque, mas reagiu como eu esperava, como um verdadeiro marido e companheiro. Sei que posso contar com ele.

— Também podes contar comigo.

Um sorriso cansado brotou do rosto dela.

— Eu sei.

— Não há possibilidade de um transplante? Bolas, Eka! Eu não percebo nada de Medicina, mas oiço falar da necessidade de dadores…

— Não é o meu caso.

— Não me estás a esconder isso, só para eu…

— Eu sei que tu me darias o coração, Mika, se eu precisasse dele. — atalhou ela. — Sei que me darias a tua vida, tal como eu te daria a minha se isso te salvasse. E ambos sabemos que nenhum de nós suportaria o ónus de ter sobrevivido à custa do outro. Por isso, se precisasse de um órgão teu que pusesse em causa a tua vida, sim, eu esconder-te-ia isso. — Suspirou. — Mas, não é o caso.

Sem que nada o anunciasse, aquele dia fizera Mikhail entrar no maior pesadelo da sua vida. Para ele, não existia uma realidade que não incluísse Ekaterina, a sua vida não tinha significado sem a irmã, não conseguiria retomar a normalidade, quando ela partisse. Apesar de não se lembrar bem, Ekaterina sabia o que era viver sem ele, fora assim entre o nascimento e os três anos e pouco, quando ele nasceu e ela ganhou um irmão. Desde essa altura, eles eram inseparáveis. Os pais contavam que, com quatro anos, Ekaterina era super protectora do irmão, ficando horas, tranquila, ao lado do berço a vê-lo dormir. Na escola, o pequeno e franzino Mikhail não era alvo dos mais velhos porque Ekaterina tornava‑se uma leoa feroz se alguém o tentasse. Na adolescência, ambos ganharam formas, ela de mulher, ele de massa de músculos. Com treze anos, Mikhail parecia mais velho que uma Ekaterina de dezasseis. Com dezoito, ela teve um namorado que se julgava dono dela e, quando ela lhe mostrou que não era assim, ele deu-lhe uma chapada, o que lhe valeu a ele uma estadia no hospital quando o jovem Mikhail soube do sucedido. Quando Mikhail conheceu o português por quem a irmã se apaixonara, não gostou dele, talvez movido pelo ciumezinho de irmão mais novo perante alguém que lhe rouba a atenção da irmã, como se fosse possível, ou pela diferença de doze anos que os separava, só que Tiago fora uma agradável surpresa. E aquele apoio que lera nos olhos de Ekaterina quando lhe contou acerca da revelação ao marido acabou por não ser novidade, Mikhail não esperava menos do cunhado.

O Sol começava a querer esconder-se atrás da catedral. Mikhail olhou para as horas. A temperatura descera significativamente. Na mesma forma automática de agir e sem registar nada do que estava à sua volta, abandonou o banco de pedra e decidiu ir para casa. Refez o percurso junto ao rio em sentido inverso, com o vento norte a soprar-lhe agressivo, como agulhas frias no rosto. O carro não estava muito longe, ele estacionara-o num parque próximo, quando veio do hospital, da conversa com a irmã, e percebeu que tinha de parar, pois desde que entrara no automóvel que as lágrimas não o largavam.

O Porsche esperava-o onde o deixara. Nesse momento, olhou para o veículo como se o visse pela primeira vez e tomasse consciência de quantos rublos ali estavam. De que valia a merda do dinheiro, se nem todo o ouro do mundo poderia salvar Ekaterina?

Os irmãos eram provenientes de uma família rica, o pai estava no ramo do gás natural e a mãe era… mãe. Para além disso, ambos ganhavam bastante bem nos seus empregos, claro que Mikhail tinha um rendimento mensal bem maior que Ekaterina. Porém, como médica e líder de departamento, auferia uma verba muito acima da média dos russos.

Mikhail oferecera-se para acompanhar Ekaterina, quando fosse dar a notícia aos pais, mas ela poupou-o a isso. Sentia-se furioso com o mundo, com a vida, com a própria fé. Como poderia Deus permitir que um ser bondoso como a irmã pudesse passar por aquilo, havendo tanto filho da puta a respirar oxigénio? Ela era o ser mais humano que conhecia, generosa, preocupada com quem a rodeia, chegara a ser médica voluntária… Ele acompanhara os dramas dela, percebendo que não poderia auxiliar todos os necessitados, que não conseguiria chegar a todos quantos precisavam de pessoas como ela, a amargura por ver o sofrimento de crianças, de idosos… Como, meu Deus? Como pode alguém assim ser estropiado da sua existência?

O Porsche roncou furioso, expondo no asfalto a raiva que fervilhava nas veias do condutor. A presença do Sol resumira-se ao crepúsculo que esmorecia a oeste e a noite instalava-se negra como a alma de Mikhail ficaria quando fosse amputado da irmã.

Mais um dia caminhava para o fim, juntamente com a certeza de que o tempo não pára, esgota-se.

 

 

 

Svetlana já estava em casa.

Quando entrou no apartamento, as luzes acesas mostraram a Mikhail que a noiva se antecipara a si. Movendo-se como se carregasse o mundo às costas, ele fechou a porta e atirou as chaves desleixadamente para cima do pequeno móvel do vestíbulo. Despiu o casaco comprido e pendurou-o no cabide, ouvindo o som dos dedos esguios dela a baterem ferozmente nas teclas do computador. Avançou para a sala, vendo-a sentada à mesa e concentrada no pequeno ecrã do portátil.

— Olá, amor! — atirou-lhe, sem desviar o olhar.

— Olá, querida!

O tom de voz de Mikhail fez soar as sinetas no cérebro de Svetlana que, imediatamente, apontou toda a atenção para ele e quase ficou chocada com a tristeza denunciada pelos olhos azuis do noivo.

— Aconteceu alguma coisa, meu amor?

Mikhail suspirou e caminhou lentamente, deixando-se cair no sofá defronte da mesa. Ela observou-o através das lentes dos óculos com os seus olhos escuros. Ele encarou-a sem defesas, não precisava de escudos com ela, nem se importaria se fosse novamente atraiçoado pelas lágrimas. Porém, o primeiro pensamento que lhe atingiu a cabeça foi como achava a noiva sensual de óculos, com aquele ar de escriturária ingénua.

Svetlana não tinha nada de ingénua, assim como não gostava de usar óculos, o que se tornara uma necessidade nos últimos tempos. Evitava usá-los diante dele, apesar de Mikhail adorar vê-la com eles e, para o provar, já haviam feito amor várias vezes… estando ela de óculos. Svetlana era advogada, umas das melhores da sua geração no famoso escritório de advogados com sede em São Petersburgo, no qual exercia funções há seis anos e que fora a causa da sua vinda de Moscovo para o norte da Rússia. Fora um grande passo para a sua carreira de advogada ainda no início, mas dois anos depois, esse passo tornou-se ainda melhor ao conhecer Mikhail na cidade dos czares. Não era uma mulher deslumbrante, não possuía a beleza estonteante das russas que aparecem nas revistas masculinas ou a desfilar em fatos-de-banho, mas o seu carisma e personalidade deixaram Mikhail completamente apaixonado. Começaram por se aproximar pela amizade, saíram juntos, partilharam bons momentos até acontecer um beijo após um jantar que terminou na casa dele, na cama, numa das noites mais maravilhosas e inesquecíveis das vidas de ambos. Viviam juntos há cerca de três anos e ele pedira-a em casamento durante as doze badaladas da entrada daquele novo ano. Ela aceitou sem qualquer hesitação e tinham a boda agendada para perto de um ano após o pedido.

Meio hesitante, Mikhail respondeu:

— Estive com a minha irmã no hospital.

— Aconteceu alguma coisa?

Ele ia a responder, mas as palavras ficaram encravadas na garganta. A lágrima que lhe escorreu pela face revelou à noiva que algo muito mau acontecera.

Svetlana levantou-se num pulo da cadeira e caminhou até ele, sentando-se a seu lado e segurando-lhe a mão. Não disse nada, sabendo que ele precisaria de tempo para verbalizar o que se lhe encravara na língua. Esperou, acariciando-lhe a mão e o cabelo louro.

— A Ekaterina está doente. — acabou por dizer.

Para deixar o noivo naquele estado, Svetlana calculou que a doença da cunhada fosse grave. Não sabia muito bem o que dizer, mas conseguiu acertar nas palavras certas:

— Ela não está sozinha. E nós estamos cá para a ajudar a ultrapassar isso.

Mikhail encarou-a e permitiu-se a um sorriso triste.

— Cancro. — suspirou, meio balbuciante. — É incurável.

Svetlana apertou-o num abraço e beijou-lhe o rosto, quase como uma mãe faz ao filho que se aleijara no joelho ao cair da bicicleta.

— Há tratamentos. — lembrou, convicta.

— Ela não os quer fazer. — contrapôs Mikhail para surpresa da noiva. — Não há muito a fazer para além de atrasar a morte. E só Deus sabe a que custo para ela.

— A tua irmã tem de lutar pela vida com todas as armas que a ciência disponha. — argumentou Svetlana, quase como se argumentasse em tribunal.

— A Eka não quer passar o tempo que lhe resta a sofrer com tratamentos. Prefere viver menos, mas desfrutar do que lhe for possível.

A pergunta que se seguiu foi cruel, mas a advogada não a evitou:

— Quanto tempo?

Os olhos húmidos de Mikhail olharam para as pérolas negras da noiva, o lábio tremeu-lhe. Não sabia qual era o prazo da irmã, mas calculou que fosse curto, daí que a melhor resposta que encontrou foi:

— Acho que… Acho que não… Talvez não venha a estar… Acho que já não será uma das tuas damas de honor.

— Meu Deus…

 

 

 

 

 

 

 

II

 

As semanas passaram numa normalidade estranha, desde que Ekaterina se encontrara com a sentença do seu destino, o diagnóstico de uma doença que lhe traçara uma linha de veto a todos os sonhos e planos que ainda estavam por concretizar. Porém, havia um desejo que ela alimentava desde há muito e sentia que ainda o poderia realizar.

Em oito anos de relação com Tiago, nunca houvera oportunidade para visitar o país dele, Portugal, do qual ele falava algumas vezes e ela apenas conhecia das imagens que visse na televisão, fotos em revistas de turismo ou por pesquisas na Internet. Queria ir ao país que ficava no lado oposto da Europa, plantado à beira do Atlântico. Por isso, a vontade dela em fazer a viagem não era nova, mas os acontecimentos recentes impulsionaram-na a marcá-la para o início do Verão seguinte. Tiago concordara. Aliás, desde que soubera da doença dela, ele parecia aceitar tudo, concordar com tudo, evitar qualquer desentendimento, se bem que na verdade raramente tivessem uma desavença e as escassas eram resolvidas em poucos minutos e quase sempre na cama.

A “cama” era outra coisa que parecia ter mudado com a revelação. Antes, Ekaterina sentia em Tiago uma tremenda fome sexual pelo seu corpo, tal como ela sempre o desejou a ele. Bolas, o sexo era tão bom com Tiago. Fazer amor de forma lenta era maravilhoso, mas ela adorava quando ele a fodia loucamente ou ela o cavalgava como uma amazona, completamente doida e insaciável. Onde estavam aqueles orgasmos violentos, quando ambos explodiam de prazer? A paixão não esmorecera uma chama que fosse em oito anos, mas depois de a saber doente, Tiago fazia amor com ela como se Ekaterina fosse uma peça de porcelana chinesa da dinastia Ming.

A chuva caía na cidade. Não estava frio, não o frio que os russos nortenhos enfrentam no Inverno, era um frio primaveril. Ekaterina conduzia a caminho do hospital, atenta para que o piso molhado não a fizesse ter um acidente. Pelo menos, já não havia gelo, mas a chuva perturbava-lhe a visão. Estacionou no parque automóvel destinado aos directores hospitalares, um lugar adjacente aos edifícios cinzentos sinistros, uma recordação soviética do tempo do comunismo e de uma época em que a cidade dava pelo nome de Leningrado. O Mercedes desportivo ficou estacionado entre um Porsche e um Tesla. Num país tão fã do petróleo, o dono do segundo arriscava-se a ser preso por insubordinação ao regime por ter um carro eléctrico.

Ekaterina riu-se do seu pensamento. A Rússia podia ser uma espécie de ditadura camuflada, mas o regime ainda não andava a controlar os seus cidadãos a esse ponto. Saiu do automóvel e abriu o guarda-chuva para se proteger. Vestia um sobretudo comprido e calçava botas de cano alto, cujos passos soavam imponentes na sua passada por entre as dezenas de automóveis ali parados, todos de gama alta, pois dirigir departamentos hospitalares não era para pelintras.

Uma vez no seu gabinete, o sobretudo ficou pendurado no cabide e substituído por uma bata branca. Não havia muito que fazer, Ekaterina apresentara a sua demissão, dias antes, e cumpria as últimas semanas de serviço. A demissão fora o primeiro passo para a sua nova vida, ou melhor, para o que restava dela. Os efeitos da doença ainda não eram visíveis, ninguém adivinharia que no corpo elegante daquela loura de olhos azuis se desenvolvia um tumor maligno que a levaria dos que amava e que a amavam. Porém, as dores faziam-se sentir, os desconfortos, e ela acabava por sucumbir à necessidade de analgésicos, os únicos medicamentos que tomava. O colega que ela consultara e que lhe dera o diagnóstico ficara chocado com a sua resistência em entregar‑se à quimioterapia, quase tomando-a por uma maluca que iria à procura de curas milagrosas à base de ervas e rezas. Não, nada disso, ela só não queria terminar a sua vida careca, enjoada, a vomitar, magérrima e uma sombra esbatida da mulher que era.

Sem nada melhor para fazer, Ekaterina passou o tempo a consolidar os planos da viagem que faria com o marido a Portugal. Inicialmente, ele oferecera-se para tratar de tudo, mas não tratara de nada. Tiago revelava-se mais consternado com a doença dela que ela própria. Para Ekaterina, aquela viagem teria de ser a sua despedida em grande, tentar esquecer o tumor (assim ele o permitisse) e desfrutar ao máximo daquela segunda lua-de-mel. Encarregou uma agência de viagens para tratar dos procedimentos legais, os vistos turísticos e os voos. A escolha e reserva dos hotéis ficaria por conta dela.

Tiago já não ia a Portugal há muito tempo, nem Ekaterina sabia quanto, apenas que nunca lá voltara desde que o conhecia. Em momento algum se mostrou entusiasmado com a ideia, mas nos últimos tempos não revelava entusiasmo com nada.

O telemóvel tocou, uma música dos Coldplay, a qual significava que se tratava de uma chamada do irmão.

— Olá, Mika!

— Olá, Eka! Como estás?

— Bem.

Ela estava sempre bem. Só se estivesse a contorcer-se de dores e prestes a desmaiar é que daria outra resposta. Nunca gostara que ficassem preocupados, muito menos agora, daí que transmitisse sempre uma imagem de quem estava bem, muito bem, principalmente ao irmão.

— Almoçamos?

Ekaterina riu-se para o aparelho.

— Não sei… — respondeu, fingindo ponderar o convite.

Antes da doença, poderiam passar-se alguns dias sem que os irmãos se vissem, mas falavam ao telefone ou trocavam mensagens constantemente. Desde que soubera da doença da irmã, Mikhail não deixava passar um dia sem estar com ela, mesmo nos fins de semana, convidando-a para ir lá a casa com Tiago para um café com ele e Svetlana ou então ia com a noiva ao apartamento dela só para uns minutos que fosse. Era como se quisesse aproveitar cada segundo que pudesse do resto da vida dela.

— Se estiveres ocupada, posso levar algo e comemos aí.

— Prefiro que me leves a um sítio bonito, talvez como aquele onde fomos ontem. Se bem que com esta chuva…

— Não te preocupes, arranjarei algo desse género.

 

 

 

O restaurante era luxuoso, digno do dono de um Porsche. A sala espaçosa abarcava dezenas de mesas, todas ocupadas por homens e mulheres de negócios ou apenas casais a desfrutar de uma refeição confeccionada por um chef. As paredes forradas a papel semelhante a veludo e motivos heráldicos pareciam querer chamar a atenção para o lado histórico da cidade. A iluminação provinha das luzes nessas mesmas paredes, uns candeeiros em forma de águias bicéfalas com lâmpadas a pender dos bicos. O tecto também tinha iluminação, faustosos lustres dourados cujos reflexos potenciavam os leds embutidos na armação. Apenas uma das paredes tinha janelas, uma linha de vidros com vista para o rio Neva, um aproveitamento do espaço se localizar no quinto andar de um hotel de cinco estrelas. Tudo ali cheirava a dinheiro.

Mikhail e Ekaterina entraram na enorme sala conduzidos por um empregado elegantemente fardado e com uma postura cerimonial. Mikhail envergava um dos seus habituais fatos caríssimos, em tom cinza, obrigatórios a quem geria uma carteira de clientes que tomava banho em dólares. Ekaterina, que tal como o irmão deixara o sobretudo na recepção, vestia uma camisola de lã roxa com gola alta e calças escuras que terminavam dentro do cano das botas.

Foram encaminhados para uma mesa junto aos vidros num canto acolhedor. Não era fácil arranjar mesa ali, nem era barato. Isso não era problema para Mikhail. O funcionário indicou a mesa, colocando-se atrás da cadeira que Ekaterina escolhera, para lhe afastar o assento, e eles sentaram-se nas cadeiras de braços, o que os fazia sentirem-se a aterrar numa espécie de trono.

— A vista é muito mais bonita em dias de Sol. — comentou ele, olhando para os olhos dela.

Ekaterina anuiu.

— Também é bonita nos dias de chuva.

Lá em baixo, o rio corria nervoso, o vento instigava-o e perturbava as árvores. Por breves segundos, ficaram ambos a olhar lá para fora. Distraidamente, Ekaterina colocara as mãos sobre a mesa, os dedos esguios de unhas pintadas a pérola a tactear o pano branco imaculado. Mikhail estendeu a mão e colocou-a sobre a dela, afagando‑lhe os dedos com ternura.

— Como tens passado?

Ela riu cansada, virando a mão que ele segurava e entrelaçando os dedos nos dele.

— Desde ontem? Ou desde que me fizeste essa pergunta há pouco?

O tom era brincalhão, Ekaterina procurava sempre desanuviar o ambiente, quando o assunto insidia sobre si e a sua doença. Não havia crítica ou recriminação.

— Sei que sou chato, ao estar sempre a perguntar, mas…

— Eu sei que te preocupas, Mika.

As mãos continuavam uma na outra, um gesto que lhes atribuía uma imagem de casal que não eram. Porém, eles eram mesmo assim, extremamente afectuosos entre si, amavam-se incondicionalmente como se fossem dois gémeos perfeitos que se espelhavam um no outro.

O empregado regressou, oferecendo-lhes as ementas. Mikhail pediu uma recomendação para a refeição, pois não lhe apetecia ler a lista.

— Como estão as coisas em casa? — questionou, após os pedidos feitos com base na recomendação.

Ekaterina encolheu os ombros, fazendo uma expressão desinteressada.

— O Tiago tem sido o que eu esperava dele, um marido dedicado. Tem-me ajudado, se bem que, felizmente, para já não dou muito trabalho.

O irmão conhecia-a demasiado bem para perceber que aquelas palavras escondiam algo.

— Dizes sempre isso, Eka. Parece que o queres desculpar de algo.

Desde miúdos… Desde sempre, eles nunca conseguiam ou queriam esconder o que quer que fosse do outro. Por isso, ela confessou o que a perturbava:

— Por vezes, o Tiago parece demasiado consternado com a situação. Sinto-o vencido, até parece que é ele que está doente. — Viu uma expressão condenatória no rosto do irmão e apressou-se a desculpar. — Não o levo a mal, Mika. Também não é fácil para ele.

— Tem a obrigação de te animar e não o contrário.

— Cada pessoa tem a sua maneira de lidar com isto.

Mikhail abanou a cabeça, mas não disse nada, uma vez que duas funcionárias se aproximaram para servir os pratos. O primeiro empregado que recomendara a comida, iniciava o procedimento de abrir uma garrafa de vinho tinto que Mikhail escolhera.

Fizeram um brinde silencioso, olhando-se e sorrindo para esconderem a tristeza.

— E a viagem? Mantêm-se?

— Sim. — respondeu entusiasmada. — Claro que sim.

Mikhail não queria que a irmã fizesse a viagem a Portugal. Nem a Portugal, nem a lugar nenhum, pois seria um período grande em que ela estaria afastada e tempo que ele perderia da vida dela ou do que restava dela. Contudo, nunca o verbalizou e fingiu-se animado quando ela lhe contara que a iria fazer com o marido. Porém, Ekaterina lia-o na perfeição e sabia que aquela viagem era como espinhos no coração do irmão.

— O Tiago também está assim entusiasmado?

O sorriso perdeu-se.

Ekaterina anuiu sem adiantar muito mais. Mikhail percebeu que o cunhado deveria estar com o mesmo entusiasmo que ele.

Durante alguns minutos, os irmãos desfrutaram da refeição, observando o exterior invernoso e fazendo comentários de circunstância, nada relevante. Quando outra funcionária veio levantar os pratos, Ekaterina repescou o assunto anterior.

— Isto acaba por não ser justo para o Tiago.

— Como assim?

— Ter de permanecer junto a uma esposa moribunda.

— Não fales assim, Eka. Por favor, não digas isso.

— Não é mentira.

— Não estás moribunda, Eka.

Ela abanou a cabeça e emendou:

— Pronto, ok, não estou moribunda, estou condenada.

Ele recriminou-a com o olhar, mas não foi capaz de contrapor com qualquer frase ou palavra. Ao invés, depositou a mão sobre a dela, sentindo-lhe a pele macia.

— Estás preocupada que não seja justo para o Tiago? E para ti, achas que é justo que… — A voz falhou-lhe, denunciando a emoção. — …que tenhas adoecido?

Ekaterina apertou-lhe a mão com ternura.

— Não seria justo para ninguém. Mas, não quero ser um fardo para ele. A minha consciência diz-me que devo dar abertura ao Tiago para… Bom, se ele quiser começar a planear a vida depois de mim, se eu…

— Pára, Eka! — exclamou num tom mais forte que o pretendido. — Não fales nisso. Cada vez que penso num futuro sem ti…

Ela viu-lhe os olhos a ficarem húmidos.

— Não falemos nisso. — concordou, sorrindo-lhe. Contudo, prosseguiu. — Devo isso ao Tiago. Ele tem sido um marido maravilhoso ao longo destes oito anos. Não quero prendê-lo…

— Na saúde e na doença. — interrompeu Mikhail. — Não é isso que se diz nos casamentos?

— Deve ser. — atirou ela, forçando um sorriso. — Como bem sabes, não somos verdadeiramente casados.

— É como se fossem. E se tivesses querido fazer a cerimónia que os nossos pais queriam, formalizar a relação, seria isso que teriam prometido um ao outro, diante do padre.

— Claro que sim, Mika. — Ekaterina fez uma expressão envergonhada. — Eu sei que ele vai protestar, ofender-se por lhe fazer semelhante proposta e acabará a dizer-me o quanto me ama.

— Então, para quê sugerir-lho?

— Porque não só ele gostará de sentir que lhe dou essa abertura, como eu me sentirei agradada por o ouvir verbalizar a recusa.

— Uma encenação, portanto. — Ela tornou a encolher os ombros. — Tu sabes que ao início eu não simpatizei com ele.

— Como se alguma vez tivesses simpatizado com algum namorado meu.

— Tal como tu com as minhas namoradas.

— És o meu irmão caçula, queria-te só para mim.

Mikhail correspondeu ao sorriso dela.

— E eu nunca gostei de partilhar a tua atenção com outras pessoas. Mas, não tenho problemas em admitir que o Tiago é um tipo porreiro e sei como és feliz com ele.

— A Svetlana também merece a minha aprovação. — retorquiu Ekaterina com humor. — Como se isso fosse condição para que vocês casassem.

— Sabes bem que é importante para mim que gostes da tua cunhada. Da mesma forma que aprecias que me dê bem com o meu.

— Como é que ela está? — questionou a irmã, mudando de assunto. — Não quero causar desentendimentos entre vocês.

— Porque haverias de causar isso?

— Por estares comigo, em vez de estares com ela. Por a fazeres visitar-me todos os fins de semana contigo, por ficar sozinha em casa quando o fazes sem ela ou por ter de me receber na vossa casa quando preferiria andar a passear com o noivo.

— Ela não vê isso assim.

— Seja como for, não levo a mal se falharmos uma vez ou outra…

— Estás a querer dizer-me que o teu marido não gosta das nossas visitas? — questionou Mikhail, suspeitando que era no lado dela que alguém estava descontente.

Ekaterina abanou a cabeça e respondeu com honestidade:

— Pelo contrário. As vossas visitas acabam por animar o ambiente lá em casa. O Tiago tem estado muito apático. Não tem iniciativa para nada e parece comportar-se como um enfermeiro, sempre preocupado se estou bem, mas inconscientemente não me deixa esquecer a doença.

Mikhail anuiu.

— E é com esse espírito que vão fazer a viagem?

Ela sabia que o irmão iria tentar encontrar uma forma de a convencer a desistir de ficar longe dele para fazer aquela viagem.

— As coisas serão diferentes nessa altura.

— Se tu o dizes, Eka…

— Não te preocupes, Mika. — finalizou sem ter realmente a certeza.

Uma rajada de vento soprou a chuva contra o vidro, o clima dava sinal de piorar. A luminosidade exterior também diminuíra e as nuvens escuras pareciam ainda mais pesadas, carregadas de água para continuar a fustigar quem tinha de andar pelas ruas da cidade de São Petersburgo.

— Tenho de regressar ao hospital.

— Já?

Ekaterina olhou para o relógio no pulso.

— Estamos aqui há mais de uma hora.

Mikhail encolheu os ombros, como se isso não tivesse qualquer importância.

— Devíamos fazer um fim de semana de irmãos, só os dois. Íamos para qualquer lado, sem ninguém para nos incomodar, ficávamos a conversar…

— O Tiago até talvez nem se importasse, mas não é justo fazeres isso à tua noiva.

— A Svetlana também não se importa.

Ekaterina não acreditou.

— Vá, Mika. Os nossos empregos chamam-nos.

Mikhail aceitou relutante que o almoço chegara ao fim.

Recolheram os sobretudos na entrada do restaurante e deslocaram-se para o átrio do quinto piso do hotel, onde aguardaram pelo elevador. Ekaterina era alguns centímetros mais baixa que o irmão, ele ultrapassara-a na altura aos dez anos. Enquanto esperava, encostou-se a Mikhail e deixou a cabeça descansar no seu ombro. Ele apertou-a contra si e sentiu a paz que lhe provocava estar assim.

As portas do elevador abriram-se e eles entraram para o espaço vazio. Mikhail carregou no botão com o “0”. Olharam-se e ofereceram um sorriso terno ao outro. Ela encostou-se a ele novamente e abraçou-o pela cintura, enquanto Mikhail a apertou com força contra si.

Meu Deus, como viverei eu quando ela… morrer?

 

 

 

 

III

 

As luzes da rua já estavam acesas, pouco passava das cinco da tarde, o que nem era mau se pensarmos que em pleno Inverno já estavam acesas hora e meia antes. Não havia muito trânsito na estrada, no itinerário que separava o apartamento onde Mikhail vivia com a noiva e aquele para onde Ekaterina se dirigia conduzida pelo marido ao volante do Mercedes. Naquele Sábado, eles foram almoçar a casa do irmão e, durante a refeição, Ekaterina reparou como o marido conversava animado com os cunhados, revelador de como sentia necessidade de socializar num ambiente diferente ao ninho deles, onde o amor parecia esfriar todos os dias. Svetlana escutava-o com atenção, interagindo na conversa, enquanto Ekaterina via o irmão a dar atenção a Tiago por cortesia, mas com os olhos nela, olhares que ela retribuía com um sorriso de uma felicidade encenada, certa de que não enganaria Mikhail.

Aquelas mudanças de estados de alma do marido perturbavam‑na, pois deixavam-na consumir pela ideia de que a doença a tornara num fardo para ele. E o silêncio a que ele se fechou ao longo do trajecto avolumou aquela sensação.

Tiago quase parecia russo, ao comportar-se daquela maneira, longe do homem caloroso que ela conhecera, por quem se apaixonara e que continuava a amar intensamente após oito anos. Ela olhou para ele, enquanto conduzia. Ele sentiu-o e retribuiu o olhar, forçando o sorriso para parecer que estava tudo bem, mas Ekaterina sabia que não estava. Ele retomou a atenção para a estrada, para o trânsito escasso, o rosto sempre bem barbeado cheio de rugas que não escondiam os seus cinquenta anos, o cabelo grisalho com madeixas brancas, os óculos de armação pesada, o nariz aquilino, a pele mediterrânica num tom de bronze natural tão diferente da tez alva dela. Os olhos castanhos voltaram a observá-la.

— Que se passa? — questionou, percebendo que ela continuava a olhá-lo.

Ekaterina ia para abanar a cabeça e dizer um “nada” ou “está tudo bem”, mas o seu cérebro decidiu aproveitar a oportunidade:

— Acho que tudo isto está a ser maligno para ti também.

O uso da palavra “maligno” fora propositada, uma forma de colar aquela espécie de depressão dele ao seu tumor.

Desta vez, Tiago manteve os olhos na estrada.

— Está a ser mau para ambos, Ekaterina. — lembrou, quase como se achasse que se poderia comparar a ela no sofrimento. Teve o bom‑senso de não ficar por ali. — Claro que para ti é muito pior, eu sei.

— Nunca falamos sobre isso. Acho que o deveríamos fazer.

O semáforo ficou vermelho e eles ficaram parados atrás de uma carrinha Skoda com aquilo que parecia um casal com vários filhos no interior.

— De que queres falar? — questionou o marido, voltando a encará‑la. — Não gosto de falar sobre a tua doença, sinto que não te fará bem nenhum.

Ekaterina questionou-se se isso seria verdade ou uma desculpa dele para não abordar um tema que era manifestamente desconfortável para ele.

— É uma evidência incontornável. Não é por não falar no cancro que ele não existe.

Sim, não tinha dúvidas, palavras como “cancro”, “tumor” ou “maligno” eram desconfortáveis para Tiago. Também o eram para ela, mas com os dias decidira-se a aceitar o destino e a aproveitar o melhor possível o que lhe restava da vida.

— Seja como for, prefiro não falar nisso.

O automóvel retomou a marcha e Tiago o silêncio. Ekaterina sentiu a necessidade de o ouvir dizer que a amava, de confirmar todo o amor que ele sempre tivera por si, abater as dúvidas que a perturbavam, afastar o medo de que a doença, para além de ir matá-la, a faria ver o seu amor a morrer aos poucos diante dos seus olhos.

— Sinto que a minha doença te está a consumir. — Tiago não respondeu, mas suspirou agastado com o assunto. — Tu não és obrigado a suportar isto, o que tenho pela frente…

— Pára, Ekaterina! — exigiu. Tiago nunca a tratara por “Eka”, fizera-o ao início do namoro e ela pediu que não o fizesse, pois só o irmão a tratava assim. — Que queres que faça? És minha mulher.

As palavras atingiram-na como quem abre uma janela sem esperar o vento forte. Na boca dele, subitamente, ser sua mulher parecia um fardo. Ekaterina respirou fundo e consumou a finalidade de conduzir a conversa naquela direcção:

— Eu vou morrer, Tiago! — afirmou como se ele não o soubesse. Esperou outra reacção irritada, algo parecido com a forma aborrecida como o irmão lhe pedia para que se calasse, sempre que o lembrava que estava de facto a morrer. Porém, o marido manteve-se impávido com o olhar nos faróis traseiros do carro da frente. Ela continuou corajosa. — Isto não é justo para ti. Não te levaria a mal, se… sei lá… se quisesses… — Tornou a inspirar, o ar parecia ter desaparecido. — Não tens de estar comigo só porque sentes que tens essa obrigação. Não quero que sintas que tens de esperar que eu morra para refazeres a tua vida.

Era ali, era naquele momento que ela esperava que ele disparatasse perante tal ideia, se irritasse com ela por sequer sugerir que ele poderia querer outro cenário que não fosse permanecer a seu lado, talvez até a insultasse por achar que ele quereria isso. Tinha a certeza de que ele lhe diria que jamais se afastaria, que a amava com todas as forças do seu ser, que não pensava em refazer a sua vida porque quando ela morresse, ele morreria com ela, mesmo que continuasse a respirar.

O silêncio que se seguiu durou poucos segundos, mas para Ekaterina foram horas, até porque cada fracção de segundo lhe dava a entender que algo naquele filme estava a correr horrivelmente mal.

— Confesso que já pensei nisso. — acabou por dizer. Isso surpreendeu-a. Mesmo assim, imaginou que a seguir vinham as juras de amor, as… — E tenho andado a ganhar coragem para abordar o assunto contigo.

Ekaterina nem percebeu que ficou boquiaberta com o que ouvia. Tiago era incapaz de a encarar e disfarçava fingindo dar atenção ao asfalto. Porém, continuou a falar:

— Sinto que não sou capaz de continuar. Sei que deveria dizer o contrário, mas… Não sei até onde conseguirei manter-me a teu lado, quando… Para já, só tens pequenos mal-estares e eu já fico… — Suspirou e abanou a cabeça.

— Não fazia ideia… — sussurrou, mal encaixando o impacto do choque com a realidade.

Ele encarou-a.

— Agradeço-te que tenhas abordado o assunto. Confesso que não sei quando teria coragem de o fazer. Sinto que te estou a falhar em toda a linha, mas… Não consigo, Ekaterina, não consigo manter esta relação.

O balde não foi de água fria, foi de gelo, um gelo de arestas afiadas que lhe retalharam a alma e feriram o coração. Não foi capaz de dizer nada, evitou olhar para ele e virou o rosto para o lado oposto, ficando a observar as pessoas nos passeios, sentindo as lágrimas a escorrer pela face.

— Ekaterina. — chamou, ouvindo-a soluçar.

— Não digas mais nada, por favor. — balbuciou.

Ele tentou segurar-lhe a mão, mas ela enxotou-o como se fosse uma varejeira nojenta.

Não disseram mais nada no resto do percurso.

O apartamento onde o casal vivia situava-se num condomínio de luxo numa das zonas mais elitistas de São Petersburgo, um presente dos pais dela quando Ekaterina decidira aceitar o convite do namorado para viverem juntos. Logo que Tiago parou o automóvel no interior da garagem do prédio, ao lado do Lada que insistia em manter pelo valor sentimental, Ekaterina saiu sem esperar por ele. Caminhou imponente até ao elevador, limpando as lágrimas e esperando não se cruzar com nenhum vizinho, não que houvesse proximidade com eles, apenas não queria que ninguém a visse assim vulnerável. Não esperou pelo marido e deixou que as portas do elevador se fechassem, quando Tiago se aproximava, subindo ao décimo andar sozinha. Irritou-se com a lembrança que as chaves de casa estavam com ele e teve de aguardar a sua chegada como uma criança amuada junto da porta.

Tiago saiu do elevador como se nada tivesse acontecido, mas incapaz de a encarar. Dirigiu-se para a porta e abriu-a, dando passagem a Ekaterina.

O apartamento não era muito grande, o suficiente para um casal em início de relação que ambicionava ter filhos. O vestíbulo largo dava acesso ao corredor onde existiam duas portas, uma para a sala e outra para a cozinha. Ao fundo, longe das visitas, um pequeno átrio com mais três portas, cujos acessos pertenciam ao quarto de casal, à casa de banho geral e ao segundo quarto onde o projecto de ninho de uma criança fora suspenso meses antes.

Ekaterina avançou pela casa, largando a mala no móvel de apoio do vestíbulo. Tiago não a seguiu, limitando-se a observá-la. Ela atravessou o corredor e entrou no quarto de ambos. Despiu o sobretudo e atirou-o para cima da cama. As lágrimas aumentaram. Receando que o marido viesse atrás de si, refugiou-se na casa de banho privada do quarto. Sabia que ele só lhe poderia dar pena e isso ela odiava. Sentou-se no tampo da sanita, apoiou os cotovelos nas pernas e segurou a cabeça com os cabelos louros caídos escondendo-lhe o rosto. Sozinha, desabou num pranto incontrolável, soluçando e lamentando ter aberto a porta ao pássaro com a certeza estúpida de que ele não voaria para fora da gaiola. Seria isso que ela era para Tiago? Uma gaiola da qual ele queria fugir? Pelos vistos, parecia que sim.

Alguns minutos passados, o som de pancadas suaves na porta quebrou o ruído do choro. Ele conhecia-a bem e sabia que lhe deveria dar tempo para se recompor. Contudo, o tempo que ela precisava para se recompor daquilo era superior ao que teria de vida, daí que preferisse ignorar o marido.

Ao som das pancadas juntou-se a voz dele, meiga:

— Ekaterina? — Ela fingiu não ter ouvido e não respondeu. — Ekaterina, meu amor. Estás bem?

Amor? Como se atrevia ele a chamá-la assim?

— Estou óptima! — respondeu-lhe num tom carregado de ironia.

— Podes abrir a porta? — pediu ele, continuando gentil. — Precisamos de conversar.

Ela suspirou. Tinham mesmo?

— Dá-me uns minutos. — A voz dela já não tinha as marcas da ironia. — Já vou ter contigo à sala.

No silêncio, Ekaterina ouviu os passos pesados dele a afastar‑se. Sim, tinham de conversar, aquela conversa não poderia ficar por ali, apesar de saber o rumo que a esperava. De repente, sentiu-se como se aqueles oito anos não tivessem passado de um caso amoroso sem significado, um mero entendimento sexual, algo superficial que perante a fatalidade de uma doença incurável, o cabrão arrumava os tarecos e ia à vidinha dele. Recriminou-se por pensar nele naqueles termos, mas como poderia sentir outra coisa, senão raiva, pelo homem que descaradamente assumia que não pretendia continuar com ela, agora que não passava de uma condenada?

Levantou-se do assento improvisado. Olhou-se ao espelho, os olhos avermelhados pelo choro, o rosto riscado pelas lágrimas e a maquilhagem esborratada. Segurou o cabelo com ambas as mãos e prendeu-o num rabo-de-cavalo. Abriu a torneira e lavou o rosto. Observou-se por alguns segundos, continuava linda como sempre, uma beleza que escondia algo que a matava por dentro, que crescia sem controlo e que o máximo que lhe iria permitir seria travar o seu avanço através do sofrimento do tratamento numa luta inglória. Ela era médica, sabia os custos para o corpo e também sabia que puxaria as orelhas a qualquer paciente seu que tomasse a decisão que ela própria tomara para si. Respirou fundo.

Mesmo sabendo que não era o caso, abriu a porta da casa de banho devagar como se esperasse encontrar Tiago ali. Isso não aconteceu, ela sabia que ele respeitaria o seu pedido. Porém, ela também tinha outras certezas acerca dele que se haviam revelado uma mentira naquela tarde. O primeiro passo foi incerto, procurando avançar e tomar uma decisão ao mesmo tempo.

Tiago aguardava sentado no sofá da sala, aguardando por ela. Acendera unicamente o candeeiro lateral ao braço do sofá e mantivera a televisão desligada. Ekaterina entrou na maior divisão da casa com uma recordação estúpida, as primeiras discussões absurdas, em que ele acabava por a insultar em português e ela só mais tarde, quando já sabia falar bastante bem o idioma de Camões, viria a perceber. Essas discussões eram migalhas na relação deles e, muitas vezes, serviam apenas para se atirarem um ao outro aos beijos e a resolver tudo na loucura sexual entre os lençóis. Aquilo que se lhe deparava, não tinha metade da desavença verbal desses tempos e jamais seria resolvida como ela adoraria.

— Desculpa! — foi a primeira coisa que lhe disse, levantando-se do sofá. — Sinto que isto só serve para te fazer sentir pior. Não quero fazer nada que te magoe.

Estás a falhar completamente.

— Não te preocupes. É bom que estejamos a ter esta conversa.

Eles conversavam sempre em russo, Tiago quase dava mostras de querer esquecer-se do seu idioma de origem. Curiosamente, sempre fora Ekaterina a insistir para que ele falasse português, que a ensinasse, ela gostava de falar a língua dele e congratulava-se por ter um nível de conhecimento de português suficiente para dialogar com qualquer compatriota de Tiago.

— Talvez eu não devesse ter assumido o que sentia.

Agora é tarde.

Ela fulminou-o com o olhar.

— Sabes bem que odeio mentiras. Já me chega pensar há quanto tempo te sentes assim e o tens escondido.

— Não achei justo que… Precisas de coisas que te deixem feliz, não que eu te fale nos meus problemas.

— Quando nos juntámos, pensei que tivesse ficado claro que não havia o teu ou o meu, havia sempre o nosso, os teus problemas eram os meus problemas, mesmo que o teu problema seja eu.

— Tu não és o meu problema, Ekaterina.

— Mas o meu cancro é. — disparou ela, contendo a raiva.

— Não coloques isso assim.

Ekaterina deu alguns passos pela sala, mais para evitar encará-lo. Sentia-se vulnerável e, pela primeira vez desde que se conheciam, não via nele um porto seguro.

— Que pretendes fazer, Tiago?

— Como assim?

— Penso que não há dúvidas que o nosso casamento… — Não conseguiu evitar o soluço, nem controlar as lágrimas. Ele tentou aproximar-se, mas o gesto dela não deixou margem para duvidas de que o queria longe. — Esta relação acabou, Tiago! Se não posso contar contigo nos maus momentos, não te quero nos bons que pudéssemos vir a ter.

— E a viagem?

Ekaterina não conteve uma gargalhada de escárnio.

— A sério, Tiago? Achas que ainda iriamos fazer a viagem depois disto? — Abanou a cabeça incrédula. — Para além disso, desde que a planeámos que não sinto em ti o mínimo entusiasmo em regressares ao teu país.

Ele não a contrariou.

— Sei que é um desejo teu. Não me importo de te acompanhar. — explicou com naturalidade. — Disse-te que tenho dificuldade em lidar com a tua doença, mas não estou desesperado para me afastar de ti.

— Mas, se calhar, eu estou incapaz de continuar a suportar-te a meu lado. — balbuciou em lágrimas.

Mais uma vez, Tiago tentou aproximar-se. Ela tornou a rejeitá-lo. Ele respeitou a vontade dela e manteve um tom de voz meigo:

— Sei que tudo isto tem um grande impacto. Vai descansar um pouco. Eu trato do jantar. Ambos precisamos de uma boa noite de sono. Amanhã conversamos melhor sobre isto.

Ela ouviu-o com os olhos marejados cravados nele. Quando se calou, Ekaterina falou com uma frieza gélida na voz:

— Quero que saias desta casa. Se tens alguma consideração por mim, se te preocupas comigo, faz as malas e vai para um hotel.

— Não podes ficar sozinha, Ekaterina. — contrapôs, quase como se dialogasse com uma criança. — Podes precisar de…

— Não preciso de nada de ti. Neste momento, a tua presença é tão maligna quanto o cancro que me consome.

A frase foi dura, mais que aquilo que Ekaterina pretendia, mas não deixava de ser uma verdadeira representação do que sentia por ele naquele momento.

— Queres mesmo que vá?

A pergunta, para maior dor dela, não revelava qualquer tristeza, parecia mais alguém com ares de superioridade a perguntar se estava mesmo disposta a abdicar dele.

— Sim.

A voz de Ekaterina revelava-se mais segura, apesar de as lágrimas continuarem a escorrer pelo seu rosto.

— Queres que vá já?

— Por favor. — confirmou. — Compreendo se precisares de mais tempo, mas, se puderes ir já…

Tiago anuiu e virou-lhe as costas. Sem que soubesse explicar porquê, a sensação de Ekaterina era que tudo aquilo, o fim da relação, se tornara uma oportunidade que o marido… ex-companheiro não iria desperdiçar.

O apartamento ficou mergulhado num silêncio amargurado, uma amargura sentida em exclusivo por Ekaterina que se deixou ficar pelo sofá com o rosto escondido nas mãos e acalmando as lágrimas. Não se largava assim uma relação, ela sentia-lhe o fim como se lhe arrancassem um braço. Já Tiago dava sinais de tratar aquilo como se ela não passasse de um caso de uma noite sem significado.

A noite caíra por completo lá fora. A luz do candeeiro era insuficiente, mas Ekaterina sentia-se confortável na penumbra. Ao fim de uma quantidade de minutos que não quantificou, viu Tiago aparecer na porta da sala com duas malas.

— Depois, trato de vir buscar o resto.

Protegida pelas sombras, ela respondeu:

— Não precisas de ter pressa, as tuas coisas não me incomodam.

— Sou só eu, não é?

— Fica bem, Tiago. — despediu-se.

A luz do corredor iluminava-o. Ele sorriu-lhe numa postura conciliadora. Custava-lhe deixá-la, mas sentia ser o melhor caminho… para ele. Mesmo assim, mesmo sabendo como lidaria mal com as consequências do adoecimento dela, ofereceu:

— Se precisares de alguma coisa…

— Serás a última pessoa a quem ligarei. — respondeu cortante.

Nada mais havia a dizer.

Tiago desapareceu pelo corredor, transportando as malas. Ela ouviu os passos dele a cortar o silêncio, os movimentos a vestir o casaco, a porta a abrir, a porta a fechar… Ele fora mesmo embora.

No entanto, Ekaterina levantou-se do sofá e foi espreitar na entrada da sala, questionando se ele simulara a saída. Não, não simulara, deixara-a mesmo sozinha sem olhar para trás. Soluçou. Nova vaga de choro incontrolável.

Regressou ao sofá e pegou no telemóvel que deixara na mesinha de apoio. Procurou o número que queria e carregou no ecrã sobre o símbolo verde. Era tarde e teve consciência que talvez nem fosse correcto recorrer ao seu auxílio. Ouviu o som de chamar até a voz do irmão a atender.

— Mika! Aconteceu uma coisa…

 

 

 

Mikhail conduzia acelerado pelas ruas de São Petersburgo. A noite fria dava sinais de trazer gelo nos chuviscos, o que propiciava um piso escorregadio e perigoso perante a forma nervosa como ele conduzia o Porsche. A irmã tentara disfarçar, mas ele percebera-lhe o choro na voz, o fungar, as tremuras nas palavras. Quando a ouvira relatar resumidamente o que acontecera, disse-lhe que iria imediatamente ao seu encontro.

Svetlana não se mostrou particularmente agradada por ver o noivo sair de casa para uma noite chuvosa, ainda para mais tendo recusado a sua oferta para o acompanhar e deixando-a sozinha. Por muito que a relação das cunhadas fosse boa, se tivessem tornado amigas, naquela situação Mikhail sabia que a irmã só o queria a ele e mais ninguém. Svetlana adoptou uma postura neutra e apresentou-se compreensiva quando ele se despediu dela, vestindo o casaco atabalhoadamente, dando-lhe um beijo que mal lhe acertou nos lábios e procurando as chaves apressado.

Sim, ela não ficara nada satisfeita e, na verdade, aquilo nem era justo para Svetlana. Porém, Ekaterina era a sua irmã, o ser mais importante da sua vida. Sim, mesmo mais importante que a noiva, algo que ele jamais admitiria. E a irmã estava a morrer, não naquela noite, claro, mas infelizmente em breve. A noiva poderia ficar amuada, ele lamentava-o e iria compensá-la quando voltasse.

Estacionou na área de visitantes do condomínio. Nem sentiu a chuva que se tornara mais intensa. O prédio tinha segurança privada, mas o armário junto à entrada reconheceu-o e limitou-se a um cumprimento fogaz. Mikhail avançou pelo átrio e carregou múltiplas vezes no botão para chamar o elevador, consciente que não era por metralhar a seta ascendente que as portas se abririam mais depressa.

Logo que entrou no transporte, pressionou o botão correspondente ao piso da irmã e voltou a metralhar com o polegar o outro sinal de fechar as portas, apesar de o fecho e a abertura serem automáticos.

Naquele edifício deveriam viver dezenas de pessoas. Contudo a insonorização dos apartamentos era tal que quase parecia que ninguém ali vivia. No átrio do décimo piso reinava o silêncio. As paredes e chão marmoreado aumentavam a sensação de frio. Sem saber bem porquê, Mikhail pensou que o decorador do espaço poderia ter tido o discernimento de meter ali umas carpetes. Foi um pensamento fugaz que se desvaneceu assim que os seus olhos encontraram a porta do apartamento da irmã. Sem perder tempo, tocou na campainha e ouviu o ecoar ténue do som.

Os apartamentos eram insonorizados, Mikhail não ouviu um sonzinho que fosse, mas teve perfeita consciência da aproximação da irmã, do momento em que parou atrás da porta e espreitou para ver quem era. O abrir da porta confirmou-lhe que todo o timing na sua cabeça coincidira na perfeição com a realidade.

Ekaterina apareceu para lá da porta que se abria, envergando um pijama azul-claro de malha polar com uma coelhinha cor-de-rosa estampada na camisola. O cabelo louro vinha preso na nuca e o rosto revelava as pálpebras inchadas pelas lágrimas, bem como os olhos raiados pelo choro. Ele entrou e ela deixou-se despenhar nos seus braços. Mikhail apertou-a com força num abraço cheio de carinho e ternura.

 

 

 

A sala continuava iluminada pelo candeeiro de pé. O ambiente de penumbra era acolhedor. Mikhail estava sentado no sofá na ponta oposta ao candeeiro que iluminava principalmente as pernas do pijama de Ekaterina que se deitara ao comprido com a cabeça no colo do irmão. Ela observava o tecto, enquanto lhe relatou calmamente todos os desenvolvimentos, desde que saíra de casa do irmão com o mari… com o ex‑marido. Mikhail ouvia-a com atenção, observando os olhos dela, ora perdidos na recordação, ora a encarar os dele, e afagava-lhe o cabelo acima da testa. Por sua vez, Ekaterina deitara-se como se estivesse num gabinete psiquiátrico, estendida de barriga para cima e as mãos sobre a cintura com os dedos entrelaçados e a outra mão do irmão sobre as suas.

Mikhail guardou para si a vontade que tinha de partir todos os ossos do corpo do ex-cunhado. Porém, não segurou um “cabrão” perante o relato.

— Estou magoada, Mika, mas tenho de compreender o lado dele.

— Estás enganada, Eka. Ele é que deveria ter sido homenzinho. Cabia a ele compreender a situação e manter-se a teu lado. Cabrão de merda!

— Pára com isso, Mika! — pediu, olhando-o nos olhos. — E não penses sequer em ir falar com ele.

— Pouco teria a dizer-lhe.

— Sei o que lhe gostarias de dizer, Mika! — retorquiu com um sorriso torcido. — E nem falavas, pois não?

Mikhail remeteu-se ao silêncio.

Não conversaram nos minutos seguintes. Ekaterina fechou os olhos e desfrutou do conforto do colo do irmão. Ele sim, ele era o seu verdadeiro, eterno e incondicional porto de abrigo. Por seu turno, Mikhail permaneceu com as mãos no cabelo e nas dela, contemplando a paz no seu rosto.

Sem abrir os olhos e permanecendo imóvel, Ekaterina quebrou o momento com a sua voz suave:

— Agora terei de viajar sozinha.

Aquilo surpreendeu-o, pois julgara que a separação aniquilaria os planos de viajar até à terra de Tiago. Contudo, Mikhail também sabia que essa mesma viagem sempre fora um projecto dela e não do cabrão portuga que partira o coração da irmã.

— Como assim? Vais à mesma?

Ela abriu os olhos e o seu azul mergulhou no dos olhos dele. Sorriu terna, encontrando uma felicidade genuína, que a fazia esquecer tudo o resto, por ele estar ali.

— Claro, Mika. — confirmou como se fosse a coisa mais natural do mundo. — Porque não haveria de ir?

— Sozinha?

Ela riu-se.

— A menos que queiras vir comigo… — Mal a frase lhe saiu da boca, a ideia pareceu fazer todo o sentido na sua cabeça. Mesmo assim, disfarçou. — Sim, irei sozinha.

Mikhail não desviou o olhar e a expressão do rosto revelava-se pensativa. Para surpresa de Ekaterina, leu-o como sempre fazia, na perfeição, e compreendeu que ele estava mesmo a ponderar a ideia que ela própria proferira como sendo estapafúrdia.

— Queres que vá contigo, Eka?

— Não te posso pedir isso, Mika. — rejeitou. — Não tenho o direito de te afastar da tua noiva.

Novo silêncio.

Ekaterina tornou a fechar os olhos, repousando e saboreando o momento. Seria maravilhoso que ele a acompanhasse. Agora que pensava nisso, percebia que ele era a pessoa ideal para partilhar aquela experiência, atravessar a Europa e conhecer o país para lá do pôr-do-sol, o pequeno território banhado pelas águas do Atlântico, onde a neve é rara e o calor era tão natural como o frio em São Petersburgo. De súbito, teve a noção que a viagem só faria mesmo sentido se fosse na companhia dele.

— Se eu te pedisse? — questionou, abrindo os olhos e encontrando os dele em si. — Se te pedisse que viesses comigo, tu vinhas?

Mikhail sorriu-lhe. Como se houvesse algum pedido que ela lhe pudesse fazer ao qual ele não concordasse. Porém…

— Talvez… Com uma condição.

— Diz.

— Quando voltarmos, tu inicias o tratamento.

Ekaterina desviou o olhar, virando o rosto para a televisão desligada em posição oposta ao irmão.

— Antes, não colocavas condições aos meus pedidos.

— Sabes bem porque o faço, Eka. — respondeu, rodando-lhe a cabeça com carinho, fazendo-a tornar a olhar para si. — Quero esgotar todas as hipóteses que possas ter.

— Não tenho hipóteses, Mika. — A voz saiu-lhe sofrida. — Estou condenada. O tratamento só me fará atravessar um suplício para poder adiar o inevitável.

Mikhail suspirou.

— Tu sabes bem que, independentemente da tua resposta, eu vou contigo.

Há muito tempo que Mikhail não lhe via um sorriso tão radioso no rosto. Ekaterina apertou-lhe a mão que cobria as suas.

— Eu amo-te, maninho!

— Também te amo, Eka!

Ela levantou-se do sofá, rodou sobre as almofadas e sentou-se ao lado dele. Cara a cara com ele, fez-lhe a promessa:

— Prometo que o farei por ti, Mika. Voltarei às consultas e farei os tratamentos que os médicos acharem melhor, seja radio ou quimioterapia.

— Quero que o faças por ti.

— Fá-lo-ei por nós.

E abraçou-o com muito amor e ternura.

 

 

 

 

IV

 

A madrugada ia bem avançada, quando Mikhail voltou à estrada para regressar a casa. Oferecera-se para passar a noite com a irmã, mas Ekaterina rejeitara.

— Já chega o tempo que estarás longe da tua noiva, quando fores comigo.

Svetlana enviara-lhe algumas mensagens ao longo do serão, curiosa em saber se estava tudo bem, algo que Mikhail sabia não ser mais que formas de o lembrar que tinha uma noiva solitária em casa à sua espera. Enquanto conduzia, pensava na irmã, feliz por terem decidido fazer a viagem juntos. Ele nunca sentira o mesmo interesse de Ekaterina em viajar e muito menos em conhecer o país do pulha do ex-cunhado. Se lá no terceiro mundo que seria aquele país fossem todos como o Tiago…

Ekaterina era a aventureira, a apaixonada por passeios na natureza, por viagens, por conhecer novos locais. Nisso, Tiago era mais parecido consigo, pouco interessado em sair do seu mundinho. Sentiu a mágoa pela irmã ter desperdiçado aqueles anos com o portuga, quando poderia ter viajado muito mais, uma vez que nunca mais voltara a sair da Rússia desde que começaram a viver juntos. Recordou as muitas viagens que ela fizera, desde a adolescência até conhecer o marido. Mikhail acompanhara-a à Grécia, quando os pais a premiaram com essa viagem por se ter formado em Medicina. Mais tarde, Mikhail retribuiu-lhe a estadia na Grécia com a semana nas Maldivas, a sua prenda pela sua formatura. Riu sozinho com a lembrança. Mikhail com vinte e poucos anos não tinha interesse nenhum nas Maldivas, mas sabia que a irmã lá queria ir, por isso, quando os pais lhe perguntaram o destino de sonho, ele deu a morada de mais um sonho da irmã. Foram as únicas vezes que viajaram juntos. As restantes viagens de Ekaterina foram com amigos e amigas.

O apartamento tinha somente uma luz acesa no vestíbulo, tudo o resto se mergulhara na escuridão. Svetlana já deveria estar a dormir, desistindo de esperar por ele. Enquanto pendurava o casaco grosso no cabide e largava as chaves, Mikhail imaginava como a noiva iria reagir quando lhe contasse que iria estar ausente numa viagem de férias com a cunhada. Esperava que ela entendesse, uma vez que ele não iria mudar a sua decisão. Caminhou até à sala e acendeu a luz sem vontade de ir para a cama, teria preferido ficar a fazer companhia à irmã, pois custava-lhe horrores pensar que ela estava sozinha. Serviu-se de uma dose de vodka no pequeno bar e sentou-se na poltrona junto à janela coberta por um enorme reposteiro. Saboreou o álcool com a mente cansada sem conseguir esquecer a irmã. Se pudesse, envolvê-la-ia num abraço e nunca mais a largaria até que o último suspiro de vida se lhe soltasse dos lábios.

A tranquilidade da ausência de qualquer ruído foi interrompida pelo som de uma porta. Mikhail reconheceu o som dos passos ligeiros a aproximarem-se. Svetlana entrou na sala com o rosto estremunhado perante a luz, vestindo um robe semelhante a um quimono, mal apertado e com as abas tão afastadas que ele lhe viu o umbigo.

— Ouvi-te chegar. Estranhei a demora para chegares ao quarto.

Distraidamente, Mikhail olhou para a abertura do robe, para a tímida cova entre os pequenos seios. A natureza não fora minimente generosa com Svetlana nesse campo, ao contrário das muitas virtudes físicas e morais que a noiva evidenciava, de tal forma que, quando estava deitada nua, o seu peito parecia o de um rapazinho.

— Estou sem sono. Não quis ir dar voltas na cama e incomodar‑te.

Ela sentou-se no colo dele e beijou-lhe os lábios.

— Bem me podias incomodar, adoro quando me incomodas a meio da noite. — confidenciou com um sorriso provocador.

Mikhail abraçou-a e apertou-a contra si, tocando-lhe os lábios com os seus, num gesto mais virado para a ternura que para a paixão.

— Como está a Ekaterina?

— Desfeita. — respondeu, desviando o olhar. — Aquele cabrão abandonou-a. Se o apanho…

Svetlana acariciou-lhe o rosto, procurando acalmá-lo.

— A tua irmã certamente que não quereria que fizesses nenhum disparate, Mikhail.

— Eu sei, Lana. Mas, custa-me que ela esteja a sofrer.

— Eu percebo, meu amor.

Será que perceberia, quando ele lhe dissesse que iria substituir o crápula como companheiro de viagem de Ekaterina? Mikhail não considerou que fosse o momento ideal para abordar o assunto, nem queria quebrar o momento que se instalava entre eles, naquela poltrona.

— Estás muito tenso, querido. Deixa-me ajudar-te a relaxar.

— Que tens em mente? — questionou, puxando a fita que fechava o quimono e olhando para as pernas esguias dela.

— Talvez me possas levar para o quarto?!

Mikhail esticou-se para pousar o copo no bar. Svetlana levantou‑se do seu colo, fingindo fugir-lhe. Ele agarrou-a pelo robe, mas ela contorceu‑se qual bailarina e libertou-se, deixando-o com o quimono na mão. Svetlana parou perto da porta e atirou-lhe um sorriso provocador, mordiscando o lábio inferior e oferecendo-lhe a visão do seu corpo nu onde conservava somente as cuecas escuras rendadas. Ele avançou para ela e, desta vez, ela não fugiu. Mikhail pegou em Svetlana ao colo e carregou-a nos braços para o quarto, enquanto ela o beijava. Havia muita ternura, mas o fogo da paixão crescia intenso.

No quarto, onde a cama ainda quente os aguardava, Mikhail deitou a noiva no colchão, entre os lençóis abertos. Desfez-se das camisolas, ao mesmo tempo que Svetlana esticara os braços para as calças e lhe desapertava o fecho. Foi a vez de ele ficar tão nu quanto ela. Svetlana viu o seu olhar incidir nas cuecas, enquanto o via puxar os boxers para baixo, dando-lhe a entender o que queria. Ela não o decepcionou e puxou o tecido singelo pelas pernas.

Sem perderem tempo, enfiaram-se por baixo do lençol e do edredão quente. Mikhail não se conseguiu abstrair totalmente da novidade que tinha para ela. Porém, haveria tempo para isso. Agora, só queria retribuir‑lhe o prazer que ela lhe oferecia.

 

 

 

O amanhecer surgiu com um Sol mentiroso, uma manhã bonita e brilhante que entrava pelas janelas do apartamento escondendo o frio seco e cortante no exterior.

Mikhail acordou sozinho na cama. Era domingo, mas ele sabia que isso era indiferente à noiva que nunca conseguia ficar muito tempo entre os lençóis, quando a claridade entrava no quarto. Meio ensonado, nem percebera o que o fizera acordar ou porque acordara, pois ainda tinha sono. Porém, não fez nada para voltar a adormecer. Ao invés, rodou no colchão e procurou o telemóvel. Ao passar o dedo no ecrã, viu as horas e surpreendeu-se, a manhã estava à beira do fim. Abriu a app das mensagens e carregou na linha de diálogo que partilhava com a irmã, escrevendo:

“Bom dia, Eka!”

O programa mostrava-a online, os vistos denunciavam que ela lera a mensagem. A seguir, a indicação de que estava a escrever. E por fim a mensagem:

“Bom dia, Mika!”

“Como estás?”

“:(”

O emoji era revelador. Ele preparou-se para digitar, mas percebeu que ela continuava a escrever e aguardou.

“Não dormi nada. Sinto-me cansada. Já nem sei se é só efeito dos acontecimentos de ontem ou o bicho a fazer das suas”

O bicho era o tumor.

“Precisas de alguma coisa?”

“Não.”

“Queres que passe por aí?”

Ekaterina não respondeu e lançou outra questão:

“Já contaste à Svetlana que vais a Portugal comigo?”

“Ainda não. Cheguei muito tarde, como sabes”

“E esta manhã?”

“Acordei há cinco minutos, maninha”

“Preguiçoso :)”

Ele retribuiu-lhe com um emoji zangado e outro a rir. A seguir, digitou um convite:

“Vem almoçar connosco”

“Não me apetece sair de casa”

“Então, passo por aí à tarde”

“Não, Mika. Hoje não. Fica com a tua noiva, fala com a Svetlana e certifica-te que ela não fica aborrecida por vires comigo”

“Porque haveria de ficar?”

“Faz-me a vontade, maninho. Toma atenção aos sentimentos dela. Imagina o que seria se ela tivesse um irmão e fosse viajar com ele e te deixasse sozinho”

Mikhail não via nisso qualquer problema.

Após um duche quente rápido e a escolha de uma roupa simples de quem não pretendia sair de casa, Mikhail saiu do quarto curioso com o que Svetlana estaria a fazer. Foi encontrá-la na sala, sentada à mesa de refeições, defronte do portátil, a aproveitar o tempo livre para adiantar alguns assuntos de trabalho.

— Bom dia, dorminhoco.

Ele aproximou-se e beijou-lhe os lábios.

— Bom dia, amor!

Svetlana retomou a atenção no ecrã do computador. Mikhail permitiu-se a um momento de contemplação, adorava vê-la de óculos, tornava-a ainda mais sensual que o habitual, mesmo que a indumentária fosse uma camisola larga e umas calças de fato-de-treino.

— Ocupada?

— A adiantar umas coisas. — respondeu. Tornou a olhar para ele. — Porquê?

— Tenho uma coisa para te contar.

Num acto reflexo, Svetlana baixou o ecrã e retirou os óculos, uma vez que as lentes lhe causavam confusão para ver mais longe.

— Diz. — pediu com toda a atenção nele.

Mikhail encostou-se às costas do sofá diante dela. De repente, pareceu tomar consciência que aquilo não seria assim tão fácil como ele julgara.

— O Tiago deixou a minha irmã. — começou, vendo o ar confuso no rosto da noiva, aquilo não era nada que ela já não soubesse. — Ela ficou de rastos. Estava lavada em lágrimas, quando cheguei. — Socou a própria mão. — Se o gajo me aparece à frente…

— Não penses nisso, Mikhail. Sei como ficas quando alguém destrata a tua irmã. Mas, esse assunto é só entre eles.

Mikhail fez um gesto semelhante a enxotar uma mosca e passou ao assunto mais sensível.

— Claro que, com isto, ele já não vai viajar com a Ekaterina.

— E ela vai? — A questão de Svetlana veio acompanhada de estupfacção. — Sozinha?

— Sim, ela disse que iria na mesma. — confirmou Mikhail. — É um desejo dela, há muito tempo que quer lá ir. E agora… Bom, não está em posição de adiar planos.

— Parece-me errado que ela o faça, mas não me diz respeito.

Pois, mas quando eu te disser que…

— Eu ofereci-me para ir com ela.

Svetlana não disse nada, limitando-se a ficar a olhar para Mikhail. Encolheu os ombros e abanou a cabeça. Ele não disse nada, aguardando as palavras que ela lhe atiraria. Porém, a noiva revelou uma calma surpreendente.

— Não posso dizer que esteja surpreendida. — acabou por dizer. — Sei bem como colocas a tua irmã à frente de tudo na tua vida. — Havia um tom de crítica subjacente, Mikhail fingiu não reparar. — Nem vou dizer mais nada.

— Isso deixa-te chateada? — perguntou perante o óbvio.

A resposta trouxe um sorriso torcido, mas as palavras não acompanharam a possível amargura que a novidade provocara em Svetlana:

— Eu compreendo que o faças, Mikhail. Ela está doente. Tu queres estar com ela. Desde que sabemos do canc… Bom, desde que sabemos disso que tu aproveitas todas as oportunidades para estar com ela. É compreensível e eu percebo, mesmo que algumas vezes me sinta colocada de lado.

— Lana…

— Espera! Por favor, meu amor, não é uma crítica ou lamento, é apenas um desabafo. — O tom de voz dela era meigo, revelador que não pretendia fazer daquilo um desentendimento. — Estou a dizer que não levo a mal que o queiras fazer. Mas, por favor, não esperes que fique feliz em ver o meu noivo a ir de férias e a deixar-me sozinha.

Mikhail aproximou-se, puxou uma cadeira e sentou-se diante dela.

— Acredita que tenho noção do que significa para ti. Nem sequer é justo e admiro a forma como o estás a encarar.

— Como se tivesse outro remédio.

— Podias barafustar, refilar, discutir. — sugeriu, colocando uma mão na perna dela. — E eu não te amaria uma gota menos que aquilo que te amo, se o fizesses.

— É por amor que o faço. Sabes bem o quanto te amo, Mikhail.

— Prometo que te compenso.

— Não precisas de me compensar. — recusou, sorrindo. Beijou-o. — É justo que queiras aproveitar o tempo com ela perante… Enfim, perante a fatalidade que ninguém merece. E a Ekaterina muito menos.

 

 

 

Os pais de Mikhail e Ekaterina nunca concordaram com a ideia de ela viajar para Portugal, mesmo quando os planos ainda incluíam o marido. Quando lamentaram a separação, deram por certa a anulação da viagem e, perante a constatação que isso não iria acontecer, revelaram forte oposição a que a filha mantivesse os planos e ainda culparam o filho por se ter oferecido para a acompanhar, como se o contrário tivesse evitado que Ekaterina fosse sozinha. Por vezes, eles revelavam conhecer muito pouco os filhos.

No entanto, todos os planos quase se goraram, a menos de um mês da partida, quando Ekaterina teve uma crise de dores, numa altura em que julgara estar a adaptar-se ao “bicho”. Acontecera num dos últimos dias de serviço como médica, numa reunião com colegas, uma espécie de despedida de médicos, enfermeiros e pessoal auxiliar que lhe eram próximos e que nutriam verdadeira admiração por ela. Estava a ser um fim de manhã normal, quando Ekaterina sentiu que algo não estava bem. Foram dores tão intensas que ela desmaiou e teve de ficar internada.

O colega que fazia o acompanhamento do seu estado de saúde tentou demovê-la da sua resistência ao tratamento e procurou convencê‑la a desistir da viagem. Não teve sucesso em ambas.

Quando soube do sucedido, Tiago tentou visitá-la, mas Ekaterina recusou a presença dele. O ex-marido não se deslocara ao hospital, ligara‑lhe para o telemóvel e ela atendeu-o, mesmo que fosse a última pessoa com quem queria falar. Conversaram poucos minutos com cordialidade, mas a intransigência dela manteve-se. E talvez tentando recair nas boas graças da família, sugeriu que o melhor para ela seria desistir dos planos de ir a Portugal. Ekaterina desligou-lhe o telemóvel na cara.

A presença mais maçadora a visitá-la foram os pais, os quais repetiam incessantemente que ela anulasse a ida a Lisboa e tivesse a noção do disparate que era submeter-se a voos longos e a uma estadia tão longe de casa. Ekaterina aturou-os por não ter outro remédio e depois pediu ao médico que lhes barrasse a repetição da visita com o argumento de que ela precisava de descansar.

Svetlana também a visitou, se bem que Ekaterina notava que ela o fazia mais para estar algum tempo na companhia do noivo que não largava a irmã que propriamente por preocupação para com a cunhada. Evitou o assunto “viagem a Portugal”, já tinham tido oportunidade de falar sobre isso, no primeiro reencontro após Svetlana saber que o noivo iria com ela. Nessa altura, houve pedidos de desculpa e compreensão que chegasse.

Mikhail receava a morte da irmã desde o primeiro minuto que se seguiu a ela lhe contar que estava doente. Porém, aquele episódio deixara‑o em pânico e permaneceu no hospital tanto tempo quanto lhe era permitido ao lado da cama dela.

Ekaterina ficou hospitalizada três dias, altura em que recebeu alta após uma bateria de exames. O irmão quis que ela fosse para sua casa.

— O que pensa a Svetlana disso?

Perante a pergunta, ele hesitou e ela percebeu que a cunhada nem sequer fora consultada.

— Prefiro ficar em minha casa, Mika.

— Mas se…

— Terei sempre o telemóvel à mão, Mika.

— Vá lá, Eka.

— Não.

Felizmente, o acontecimento não se repetiu, muito por causa da mudança da medicação e o suporte dos analgésicos que o colega lhe receitara. E no início do Verão, o tão esperado dia chegava.

 

 

 

 

V

 

O apartamento onde vivera com Tiago nos últimos oito anos tornara-se um lugar sombrio. Aquele espaço representava uma vida que afinal não tinha o significado que ela julgara. Viver sozinha era difícil para si, nunca fora uma mulher solitária e sempre socializara com facilidade. Para além disso, desde o colapso no hospital devido às dores, Ekaterina escondia um pânico profundo de sofrer um ataque semelhante quando estivesse sozinha e não ter ninguém para a socorrer, um medo que guardou para si, pois se o irmão soubesse, ter-se-ia mudado lá para casa.

O Sol brilhava lá fora, o dia estava lindo. A temperatura amena agradável fazia esquecer o frio rigoroso que envolvia a cidade em cerca de dois terços do ano. Ekaterina observava o céu azul pela janela, aguardando a chegada do irmão. Mikhail deveria estar quase a chegar, era sempre pontual. Ela virou-se para o interior da sala, olhando para a decoração e em como aquele lugar a cansava. Não evitou nova lembrança de Tiago, constatando que ele fora a sua primeira e única relação séria. Antes de Tiago, ela tivera algumas relações que mal chegaram a ser um namoro ou compromisso. Sim, Tiago arrebatara-a e fizera-a querer prender-se a uma relação e partilhar o resto da vida com alguém. Nunca pensou que a abandonasse quando ela mais precisou dele.

A mala esperava-a no vestíbulo, continha tudo o que ela considerava essencial para a estadia em Portugal, mais umas quantas outras coisas. Ekaterina parou diante do espelho e analisou-se. Vestira calças de ganga azul em tom claro, uma camisa escura e um casaco de malha roxo. Sobre a grande mala, ainda deixara um blusão igualmente de ganga clara. Sabia que em Portugal estaria calor, Tiago falara-lhe diversas vezes de como o calor podia ser intenso na sua terra natal, mas ela preferia ir prevenida. Deitou nova olhadela ao reflexo, ajeitou os óculos‑escuros sobre a cabeça, quase como se fosse uma bandolete a segurar-lhe os longos cabelos louros soltos. Pintara os lábios com um rosa suave, desenhara um ténue eyeliner ao redor dos olhos e intensificara o brilho das pestanas com rímel.

A campainha tocou. Pelo toque, sabia que só poderia ser o irmão, caso contrário teria sido o telefone de contacto com a portaria a tocar, para que o segurança lá em baixo lhe comunicasse quem vinha e se ela autorizava a subida. O irmão já era conhecido por todos os porteiros e estes nem perdiam tempo a anunciá-lo.

Espreitou pelo pequeno visor, confirmou que estava certa e abriu a porta.

Mikhail surgiu sorridente, enfiado numas calças estilo chino em tons caqui e num casaco quente branco que escondia parcialmente a camisola de gola alta.

— Olá, Eka! — cumprimentou, avançando e abraçando-a.

Trocaram um beijo na face.

— Olá, Mika! — Observou o irmão, o cabelo louro precisava de um corte, segundo os padrões dela. — Tens noção que está calor em Portugal, não tens? — questionou, apontando para a roupa dele.

— Não faço ideia como é o Verão lá. Nunca lá fui.

Ela riu-se.

— Em breve descobriremos.

— Estás pronta?

Ekaterina anuiu e segurou no casaco, enquanto o irmão se encarregou da mala. Saíram para o átrio impessoal, ela deitou um último olhar ao apartamento. Sim, estava cansada daquele lugar. Fechou a porta e guardou a chave.

Desceram no elevador com os olhos um no outro, a sorrir.

— Vieste sozinho?

Ele abanou a cabeça.

— A Lana vai levar-nos ao aeroporto.

O voo estrava previsto para pouco depois das duas da tarde. Não havia necessidade de estar no aeroporto com mais que uma hora de antecedência, seria um voo interno com destino a Moscovo, onde fariam escala para depois prosseguirem rumo a Lisboa. Contudo, Ekaterina detestava imprevistos e preferia antecipar as coisas, daí que ainda fosse meio-dia.

Saíram do elevador para o átrio do piso térreo, Mikhail caminhava ao lado da irmã rebocando a sua bagagem. Ekaterina trocou algumas palavras com o segurança, deixando algumas indicações para a sua ausência, vendo pelo canto do olho o irmão a continuar para o exterior.

Também era Verão em São Petersburgo e o Sol brilhava alto. Só que as temperaturas quentes, verdadeiramente quentes, não se encontravam por ali. Ekaterina vestiu o blusão de ganga, saindo para a rua e observando o irmão a guardar a mala na bagageira do BMW da noiva.

Svetlana encontrava-se junto da porta do condutor, envergando um sobretudo bege sobre o fato formal azul-escuro. Para ela, aquele era um dia normal de trabalho e usara a pausa de almoço para transportar o noivo e a cunhada ao aeroporto. Recebeu Ekaterina com um sorriso forçado. Eram amigas, mas ela levava-lhe o noivo para longe por demasiados dias, sendo que por demasiados se compreenda qualquer número acima de zero. As cunhadas trocaram um beijo. Ekaterina entrou para o lugar atrás do condutor, o que permitia ao irmão olhar melhor para ela, virando-se para trás, ao lado da noiva.

Ekaterina vivia em Peterhof, um bairro rico a sul da Baía do Neva. Mikhail e Svetlana tinham o seu apartamento a norte da baía, noutro bairro de elite, Olgino. Ambos ficavam afastados da confusão urbana do centro de São Petersburgo. O percurso de carro demoraria uns trinta e tal minutos, cerca de quarenta quilómetros até ao Aeroporto de Pulkovo. Svetlana ligou a ignição e o BMW avançou para fora da área privada do condomínio.

— Como tens passado? — perguntou a condutora, olhando para a cunhada pelo espelho retrovisor.

Ekaterina gostaria de lhe perceber as emoções pelo olhar, mas a noiva do irmão cobria parcialmente o rosto com enormes lentes pretas. Antes de responder, o irmão olhou para trás, como se estivesse curioso com a resposta, logo ele que estava com ela todos os fins de tarde, antes de regressar a casa depois do trabalho. Sentiu-se vulnerável e baixou os óculos que mantinha na cabeça, tal como faria se o Sol tivesse subitamente despontada por detrás de uma qualquer nuvem que não se avistava no céu.

— Tenho estado bem.

— Pareces mais magra. — atirou Svetlana, o que provocou um olhar desaprovador ao noivo.

— É natural. — concordou Ekaterina. — A medicação tira algum apetite.

— Felizmente, não tens tido dores, pois não, Eka?

— Ando a ficar uma mariquinhas. — confessou envergonhada. — Mal sinto dores, tomo um analgésico.

— Tens de ter cuidado para que não te provoquem habituação. — alertou Mikhail.

Ekaterina riu-se.

— Deixa lá, Mika! Esse é um mal menor.

O irmão ia a dizer alguma coisa, mas Svetlana decidiu intervir:

— Tens a certeza que a viagem que vão fazer é boa ideia?

— Lana! — admoestou Mikhail, aborrecido.

Ekaterina sorriu para o irmão e respondeu olhando para o retrovisor:

— Tenho a certeza absoluta.

Svetlana calou-se.

O ambiente no interior do carro tornou-se pesado, meio desconfortável. Ekaterina sentia-se animada por ir viajar, ainda para mais com o irmão. Queria falar dos pormenores e tinha a certeza de que a mesma vontade andaria pelo pensamento dele. Nenhum tocou no assunto, pois seriam como duas crianças a falar de um brinquedo do qual a terceira não poderia desfrutar. Ao invés, os irmãos reservaram a atenção para a paisagem verdejante a ladear a autoestrada A-118 ao som da rádio russa.

O Aeroporto de Pulkovo surgiu à direita deles. No céu, um avião descia alinhado com a pista. Svetlana abandonou a A-118 no nó junto ao aeroporto, desviando para sul e entrando na P-23. O trânsito era ainda mais intenso por ali, tratava-se de uma via que ligava o centro da cidade de São Petersburgo aos terminais de aviação. Conduzindo com uma tranquilidade que não sentia, Svetlana desviou na saída seguinte onde as placas brancas com letras pretas lhes anunciavam o destino.

Muitos carros e autocarros circulavam por ali. Passaram os primeiros parques de estacionamento e alcançaram os principais edifícios. Svetlana conseguiu um espaço para parar, perto das portas por onde os passageiros entravam no terminal, por baixo da primeira ponte pedonal onde se erguiam as letras “Polkovo Airport Saint Petersburg”.

Ekaterina foi a primeira a sair, dando tempo para uma despedida mais íntima dos noivos. Contudo, Svetlana saiu logo a seguir e Mikhail copiou-as no lado oposto do automóvel. Enquanto ele retirava as malas da bagageira, Ekaterina puxou o braço da cunhada e encaminhou-a para o passeio, afastando-se do irmão.

— Espero que me perdoes, Lana.

Svetlana abanou a cabeça e sorriu, um sorriso que desta vez pareceu franco.

— Não há nada a perdoar.

— Lamento estar a afastar o teu noivo, mesmo que por pouco tempo.

— Não penses nisso. — pediu Svetlana, afagando-lhe o braço. — Teremos muito tempo só para nós quando…

— Quando eu morrer?! — completou Ekaterina.

A cunhada mostrou-se chocada.

— Oh… Por Deus, não, Ekaterina. Refiro-me ao casamento, à lua‑de‑mel… Achas que pensaria isso?

— Desculpa, Lana.

Svetlana abraçou Ekaterina com fraternidade.

— Tu és a irmã do homem que eu mais amo neste mundo. E és também minha irmã. — Puxou os óculos para o topo do cabelo negro para que a outra lhe visse a sinceridade no olhar. — A sério, Ekaterina, tenho‑te como uma irmã de coração.

— O meu irmão tem muita sorte em te ter encontrado, Lana.

A noiva sorriu, meio envergonhada e algo emocionada.

— É natural que me sinta triste por ele se ausentar. — Forçou um sorriso. — Desde que estamos juntos que nunca passámos uma noite afastados. Acho que já nem sei o que é viver sozinha. — Sentiu a mão de Ekaterina no seu rosto e colocou a sua sobre a dela. — Mas, compreendo e concordo que ele vá. Quem melhor para te fazer companhia, senão o teu irmão?

— Tu és um ser maravilhoso, Lana.

— Pára com isso, ainda me fazes chorar. — Riu emocionada. — Tenho uma sessão em tribunal à tarde, não quero ir com a maquilhagem esborratada.

Ekaterina voltou a acariciar-lhe o rosto e deu-lhe um beijo prolongado na face.

— Obrigada, Lana!

A cunhada fez uma expressão de que não era nada de especial e retribuiu o beijo, dizendo:

— Toma conta do Mikhail, não o deixes embeiçar por nenhuma latina.

— Achas? O meu maninho só tem olhos para ti, não te preocupes.

Mikhail aguardava junto ao carro, percebendo que a irmã quisera ter aquela conversa privada com a sua noiva. Quando confirmou que se despediam, avançou com as malas. Foi a vez de Ekaterina se afastar e dar privacidade aos noivos, ficando a vê-los dialogar sem ouvir, a abraçarem‑se com muito amor e a beijarem-se apaixonados. Por fim, descolaram-se e Svetlana acenou uma última vez a Ekaterina, reentrando no automóvel e arrancando ao mesmo tempo que eles entravam no edifício.

Mikhail quis rebocar ambas as malas, mas a irmã impediu-o.

— Não estou inválida, Mika.

Ele riu-se e não a contrariou, usando a mão livre para segurar na outra mão dela.

O aeroporto não tinha muito movimento, não era um daqueles aeroportos internacionais com milhares de passageiros a correr de um lado para o outro. Também se viam muitos turistas, uns a chegar e outros a partir. Mikhail e Ekaterina deslocaram-se para o balcão de check-in onde uma funcionária da companhia aérea russa os recebeu com um sorriso protocolar radioso. Após despacharem a bagagem, prosseguiram para a etapa seguinte.

O voo era doméstico, não haveria controlo de passaportes, isso só aconteceria em Moscovo. Ekaterina revelava-se cada vez mais animada e já sem a necessidade de refrear a felicidade para não magoar a cunhada. Mikhail partilhava do seu entusiasmo, mas mais pelo tempo que iria usufruir da companhia da irmã que pelo destino da viagem.

O controlo de acesso às salas de embarque foi pacífico, o normal em qualquer aeroporto e com a vantagem de nem haver fila para os pórticos de detecção de metais e verificação de bagagem de mão.

— Queres comer alguma coisa, Eka?

Ela abanou a cabeça.

— Não tenho fome.

Seguiram as indicações para a porta de embarque do seu voo, faltavam vinte minutos para se iniciar a entrada dos passageiros.

 

 

 

As hospedeiras da Aeroflot circulavam pelo corredor central, confirmando que os passageiros tinham os cintos postos e fechando alguns compartimentos abertos sobre as suas cabeças. A lotação não estava esgotada, mas eram poucos os lugares vagos. Ekaterina ficou no lugar junto da janela, Mikhail a seu lado e uma senhora idosa no assento antes do corredor.

— Já tinha saudades de voar. — confidenciou ela, enquanto esperavam que o avião iniciasse a marcha. Olhou para o irmão. — Tu nem por isso.

Mikhail nunca gostara de andar de avião, só mesmo por obrigação. Nos últimos anos, o mais longe que tivera de ir, e por motivos profissionais, fora a Moscovo e usara o comboio.

— O que não faço por ti, maninha?!

Ela apertou-lhe a mão com carinho, encostou-se a ele e deu-lhe um beijo na bochecha.

— Obrigada, maninho!

A ligação entre São Petersburgo e Moscovo demorou hora e meia. O voo foi calmo e tiveram direito a uma pequena refeição que serviu para acomodar o estômago. Não falaram muito durante a viagem, Ekaterina dedicou o tempo a ler o guia de Lisboa que comprara na Internet. Naqueles dias que antecederam a viagem, ela dedicara o tempo a planear a viagem, a fazer pesquisas e a programar o itinerário. Para além disso, instalara apps de guias virtuais no telemóvel e estudara a melhor forma de se deslocarem na cidade. Por seu turno, Mikhail foi espreitando o guia, mas ficou sonolento e adormeceu.

O céu nublado cobria a capital da Rússia, nem dava bem para perceber se eram nuvens ou poluição. O avião aterrou à hora prevista. Os irmãos saíram lentamente do aparelho, aguardando o movimento vagaroso de todos os passageiros a recolher as bagagens dos compartimentos e a avançar. A escala em Sheremetyevo levaria quase duas horas, mais tempo que o voo entre as duas cidades. Não tinham de se preocupar com as malas no porão, essas seriam transferidas para o outro avião, só tinham de trocar de terminal, uma vez que o avião estacionara no Terminal B e o segundo voo partiria do C. Seguiram as placas e as indicações do pessoal do aeroporto que lhes indicou como ir de um ponto ao outro.

Ekaterina queria sempre despachar as tarefas, daí que tivessem seguido de imediato para o sector alfandegário e para o controlo de passaportes junto das autoridades. O agente verificou as identidades de ambos e concedeu-lhes a passagem para a zona reservada aos passageiros de voos internacionais.

Como tinham tempo, estacionaram num café da zona comercial e pediram um sumo e um pastel.

A quantidade de pessoas era imensa, muito diferente da relativa calma no aeroporto da sua cidade natal. Muitos turistas vindos dos quatro cantos do mundo, Moscovo parecia atrair cada vez mais visitantes. Sentados na esplanada interior do café, diante do corredor que ligava a zona às portas de embarque, eles observavam a realidade distraídos.

— Voltaste a falar com o Tiago?

Ekaterina bebericou o sumo e respondeu:

— Não. Depois de ter saído do hospital, ele mandou-me uma mensagem para saber como eu estava. Ainda está à espera da resposta.

Mikhail ia soltar uma imprecação, mas controlou-se. Ao invés, mudou de assunto:

— Falaste com a Svetlana… Está tudo bem entre vocês?

— Sim, Mika. Não te preocupes. A tua noiva é uma mulher com M grande. Não sei se no lugar dela teria o mesmo discernimento.

— Ela percebe que tu… — Mikhail nunca conseguia abordar a doença da irmã por palavras concretas. — Ela sabe porque o faço.

— Estás bem entregue. — constatou, observando-o com uma expressão tranquila.

Mikhail mostrou-se aborrecido.

— Não fales assim, Eka. Ninguém tomará o teu lugar.

—Não estou a dizer isso, Mika. Apenas me descansa saber que ela estará a teu lado, quando…

— Podemos falar de outra coisa?

— Claro.

Porém, ficaram ambos em silêncio.

O voo da Aeroflot que ligava Moscovo a Lisboa partiu do Aeroporto Sheremetyevo às cinco e meia da tarde. A aeronave era maior que a primeira e levava mais passageiros. Ekaterina voltou a posicionar-se junta à janela, lugar que Mikhail evitava. Desta feita, o interior não tinha um corredor a atravessar linhas de três mais três lugares, tinha dois corredores a cruzar linhas de dois mais quatro mais dois lugares. Os irmãos ficaram na vigésima fila no lado direito.

A travessia da Europa levou quase seis horas. Ekaterina adormeceu no ombro do irmão a meio da leitura do guia. Mikhail envolveu-a com o braço e velou-lhe o sono tranquilo. Ela só acordou quando o piloto anunciou que estavam em rota com a pista do Aeroporto da Portela, em Lisboa, informando igualmente as horas locais e a temperatura.

— Vinte e sete graus? Às nove da noite? — questionou Mikhail com surpresa. — Qual é a diferença horária?

Meio ensonada, Ekaterina disse-lhe que em São Petersburgo seriam três horas mais tarde.

Ainda era de dia, quando o Airbus aterrou na capital de Portugal. O Sol já descera a linha do horizonte, mas o crepúsculo provinha da tonalidade alaranjada para lá da cidade. Ekaterina observava encantada a paisagem lá em baixo, conforme o avião sobrevoava Lisboa, o oceano, o norte da península de Setúbal, dando a volta e começando a descer para se fazer à pista de oeste para este.

— Isso são prédios? — questionou Mikhail assustado, vendo a proximidade dos edifícios.

— O aeroporto fica dentro da cidade. — explicou a irmã com tranquilidade.

— Bolas…

A aterragem foi suave, o pequeno impacto das rodas no asfalto, o roncar dos motores a travar e a velocidade a diminuir progressivamente.

— Chegámos! — exclamou Ekaterina com um largo sorriso e um brilho no olhar.

Havia muitos passageiros russos, mas Ekaterina percebeu pelas vozes que muitos portugueses regressavam da Rússia. Mikhail retirou o telemóvel do bolso e desligou o modo de voo. Enquanto esperavam, abriu a app de mensagens e digitou uma breve a Svetlana para lhe dizer que já tinham aterrado. Ela respondeu com o pedido que lhe ligasse quando chegasse ao hotel

“Não sei o tempo que iremos demorar”

“Não importa, eu espero”

Os passageiros foram saindo pela frente do avião, onde uma rampa coberta lhes dava acesso ao edifício. Ekaterina começou a ler tudo o que via, nunca estivera diante de tanta informação em português e orgulhava-se de compreender quase todas. Mikhail socorria-se das traduções em inglês. Foram seguindo as indicações, era um voo externo à União Europeia, daí que fossem conduzidos à porta burocrática do país, a zona alfandegária.

O amplo espaço dividia-se em cidadãos da UE e externos à UE. Eles encaminharam-se para o segundo sector, avançando por corredores formados por pilares pretos de um metro de altura ligados por fitas azuis. Havia mais pessoas provenientes do exterior à União Europeia. Mikhail reconheceu alguns passageiros do seu voo a prosseguir rapidamente pela zona destinada aos portadores de passaporte ou cartão de cidadão português. Ekaterina observava em redor, quase inebriada, uma sensação estranha oferecia-lhe uma tranquilidade agradável.

Um agente da Polícia de Segurança Pública olhou para os irmãos, quando chegou a vez de eles apresentarem os passaportes. Ekaterina viu um homem que deveria ter a idade deles, usava o cabelo preto curto e fardava um polo azul-claro e calças azul-escuras, ela leu a palavra “Polícia” escrita sobre o coração. Sorriu-lhe. Sem grande simpatia, o agente olhou para ambos ao mesmo tempo que verificava os passaportes e perguntou-lhes em inglês pela finalidade da vinda a Portugal. Ekaterina respondeu pelos dois, vinham de férias. Mikhail assistia a tudo de rosto fechado, talvez tivesse sido isso a provocar a pouca simpatia do português. O agente carimbou ambos os documentos, apontou-lhes a passagem entre guichés e desejou-lhes uma boa estadia.

Continuaram a circular pelo aeroporto, seguindo as indicações de “bagagem/luggage” para irem recolher as suas malas. Mikhail procurava as informações em inglês, mas Ekaterina, apesar de mais confortável no inglês, preferia tentar perceber a informação em português. Nos ecrãs informativos, a linha referente ao seu voo da Aeroflot indicava o número da passadeira por onde seriam entregues as malas.

Já muitos passageiros se aglomeravam à volta da linha circular por onde as bagagens que brotavam de uma rampa seriam apresentadas aos seus donos. Mikhail olhou para as horas, tinham aterrado há quase uma hora e nada de malas. Como era quase uma hora da manhã em São Petersburgo, ele enviou nova mensagem à noiva.

“Isto está demorado, não sei quanto tempo iremos demorar a chegar ao hotel”

A resposta surgiu um minuto depois.

“Tenho de ir dormir, meu amor. Manda só uma mensagem quando chegares, só para saber que chegaram bem. Amanhã falamos. Amo-te!”

“Combinado, Lana. Amo-te! Beijinhos”

Ekaterina observava a passadeira parada, ansiosa por recolher as malas. Sentia-se cansada e sabia que o hotel não era já ali. Viu o irmão a trocar mensagens com a noiva e sorriu-lhe quando os seus olhos se encontraram.

— Já com saudades? — questionou com um humor cansado.

— Queria que lhe ligasse quando chegássemos ao hotel. — partilhou o irmão, guardando o telemóvel no bolso. — Disse-lhe que íamos chegar tarde, não valia pena ficar à espera.

— Manda-lhe só uma mensagem.

— Foi o que ela disse, Eka. — retorquiu com um sorriso.

Nesse instante, a passadeira começou a mexer e as malas surgiram. Quase como uma compensação divina, a bagagem deles foi das primeiras a brotar da saída. Mikhail recolheu ambas as malas pesadas com a facilidade de quem tinha o seu porte muscular.

— E agora, Eka?

Ekaterina segurou a pega da sua e os dois dirigiram-se para a saída.

— Vamos procurar o transporte para nos levar ao hotel.

Atravessaram o corredor de “nada a declarar” e saíram para a zona de chegadas onde as pessoas esperavam familiares e amigos e muitos operadores turísticos aguardavam os clientes.

Os irmãos desceram a rampa escolhendo aleatoriamente um dos lados. Ekaterina recorreu aos seus apontamentos no telemóvel para confirmar o que deveria procurar. Ao fundo da rampa, viu o posto de venda do Lisboa Card, um cartão que lhes permitia circular sem limite diário nos transportes da cidade por um, dois ou três dias. Mikhail seguiu‑a, dando-lhe a iniciativa de tratar daqueles pormenores, uma vez que se sentia completamente perdido.

Uma rapariga com imagem de modelo atendeu-os com um sorriso, vestia uma t-shirt escura com as letras “Welcome to Lisbon” estampadas no peito singelo. Ekaterina reparou que a moça apertara o tecido na cintura para que a camisola ficasse mais justa ao corpo. Apesar do desejo de tentar falar português, Ekaterina continuou no inglês.

Curiosamente, a rapariga foi muito atenciosa e esclareceu todas as questões de Ekaterina. Quando olhou para o irmão, viu-o completamente atento na jovem e recordou as palavras de Svetlana: “não o deixes embeiçar por nenhuma latina”. Fingindo não reparar na troca de olhares entre eles, Ekaterina pediu que lhe indicasse o Metropolitano. Mais uma vez, muito solícita, a rapariga deu-lhe todas as indicações. Ekaterina pagou os dois Lisboa Card para três dias e afastaram-se, agradecendo-lhe a simpatia.

— Os portugueses são um povo simpático e acolhedor, Mika.

— Espero que sim, só conheço aquele merd…

Calou-se perante o olhar condenatório dela.

— Pode ter acabado, mas vivemos juntos oito anos, Mika. Ele foi desleal comigo, mas não é por isso que vou querer ouvir insultos a ele.

— OK, Eka. Desculpa!

— Ah… E da próxima vez disfarça. — Ele olhou-a confuso. — A forma como olhaste para a rapariga. Parecia que a querias comer.

— Não era má.

— Estás noivo, Mika.

Mikhail riu-se.

— Imagino que a Svetlana te tenha pedido para tomares conta de mim.

— Conheces bem a tua noiva. — confirmou, rindo-se. — Mas, eu sou tua irmã e a tua maior cúmplice. Achas que lhe diria alguma coisa se te envolvesses com alguém, durante a nossa estadia?

— Sei bem que não. Mas, vim para estar contigo, não foi para me portar como um adolescente com o cio numa viagem de finalistas.

Não foi difícil encontrar o acesso ao Metropolitano. Existiam duas escadas de acesso, a rapariga alertara-a para descer na plataforma que tinha “São Sebastião” como destino.

A quantidade de pessoas na plataforma não era muita e quase todas tinham ar de turistas. A composição ecoou estridente no túnel e parou com um guinchar ensurdecedor. As carruagens não tinham quase ninguém. Eles entraram com a abertura das portas e sentaram-se num banco duplo com Mikhail a segurar ambas as malas no corredor.

— Sabes onde temos de sair?

— Sei, Mika. Estação Oriente.

 

 

 

 

VI

 

O bafo quente atingiu-os de surpresa no momento em que, pela primeira vez, tinham contacto com o exterior. O amplo passeio defronte da enorme Estação Oriente estava deserto e poucas pessoas andavam por ali. Os irmãos subiram os vários pisos, desde o apeadeiro do Metropolitano até ao nível da rua. Passava das onze e meia da noite e a temperatura deveria rondar os vinte e poucos graus.

Mikhail já se desfizera do casaco que segurava por baixo do braço e lutava com a gola alta da camisola.

Tudo parecia normal, mas mal foi atingida pelo ar quente, Ekaterina teve uma sensação estranha que a fez estremecer.

— Estás bem, Eka?

Ela encolheu os ombros.

— Não te sei explicar. Sinto algo esquisito, não sei como descrever.

— Parece que estás a regressar a casa, não é?

Ekaterina encarou o irmão pasmada.

— Como adivinhaste?

— Porque senti o mesmo, quando senti o ar da rua. — Suspirou. — Bolas, que calor…

Mal refeita do choque, ela tentou desvalorizar o assunto, habituada a que o irmão sentisse, pensasse e agisse em sintonia consigo.

— Eu disse-te que aqui as temperaturas nada tinham a ver com a nossa terra.

Mikhail perdeu a paciência e despiu a camisola de gola alta, amorfanhando-a junto com o casaco.

Ekaterina olhou em redor, sabia que o hotel ficava junto da estação. Não havia muito trânsito nas avenidas, mas os ruídos dos motores e o eco por entre as paredes dos edifícios aumentou o impacto dos sons.

— É ali! — apontou ela.

Mikhail viu o alto edifício a poente da central de transportes.

O som das rodas a rolar na calçada acompanhou-os naqueles metros até ao alojamento.

— Escolhi o hotel perto da estação porque este é o principal entreposto de transportes da cidade. Daqui podemos ir para qualquer lado.

Ele anuiu sem dar importância, deixaria os pormenores de logística com ela.

Não se via ninguém, somente no Centro Comercial Vasco da Gama se vislumbravam algumas pessoas que saiam de um espaço comercial que parecia já ter as lojas fechadas. Eles atravessaram a larga via que ladeava a estação e contornaram a esquina para entrar no hotel.

O ambiente interior era agradável e o ar condicionado funcionava de forma a que a temperatura fosse constantemente confortável. O balcão da recepção localizava-se à direita e eles dirigiram‑se lá.

— Boa noite! — cumprimentou Ekaterina em inglês. — Têm uma reserva em nome de Ekaterina Alienka Protasova?!

O sotaque dela tinha um arranhar que não escondia a sua origem russa.

Atrás do balcão, o funcionário envergava uma farda imaculada em castanho pesado com o nome do hotel na lapela. Deveria ter pouco mais de trinta anos e mostrou-se altivo, um requisito para trabalhar num hotel de cinco estrelas como aquele. Porém, revelou-se simpático e falava um inglês perfeito.

— Boa noite! — retribuiu, dividindo a atenção pelos dois. — Deixe‑me confirmar, por favor.

Mikhail aguardou, analisando o interior. Viu passar uma rapariga fardada no átrio e sorriu-lhe quando ela olhou para ele. Ekaterina manteve a atenção no funcionário que procurava a reserva no computador.

— Sim, cá está. Reserva de um quarto de casal em nome de Ekaterina Alienka Protasova. — A forma como dissera o seu nome fez‑lhe recordar o sotaque do marido… do ex-marido. Tornou a sorrir‑lhe. — Temos a indicação que iria chegar tarde.

Ekaterina anuiu, enviara um email, uns dias antes, a avisar a hora do voo e que teriam de fazer o check-in no hotel muito tarde. A reserva fora feita há muito mais tempo, quando Tiago ainda fazia parte do elenco, daí o quarto de casal.

— Fizeram boa viagem?

— Sim. Mas, cansativa. Muitas horas de voo.

— Preciso dos vossos passaportes, por favor.

Mikhail antecipou-se e depositou o seu sobre o balcão. Ekaterina retirou o seu da bolsa e colocou o livrinho com o símbolo da Federação Russa junto ao do irmão.

Enquanto verificava os documentos, o funcionário entregou-lhes uma folha para Ekaterina preencher. O questionário era bilingue e ela esforçou-se por olhar somente para o texto português, escrevendo e assinalando opções. Por fim, assinou o seu nome com uma caligrafia digna de uma iluminura.

Continuando num inglês perfeito e dividindo a atenção pelo casal, o funcionário explicou que o pequeno-almoço era servido no restaurante do primeiro piso, entre as seis e meia e as dez e meia da manhã. O hotel tinha vários restaurantes, ele recomendou uma bebida no rooftop com uma vista magnífica para o rio e a cidade. Entregou-lhes dois cartão-chave dentro de um invólucro que continha igualmente a senha para o WiFi.

— O quarto fica no décimo quarto piso. Querem ajuda com as malas?

— Obrigado. — recusou Mikhail fazendo-se ouvir pela primeira vez.

O funcionário anuiu e indicou-lhes o caminho para os elevadores.

O ambiente no hotel era silencioso, àquela hora os hóspedes estariam nos seus quartos, possivelmente a dormir. No átrio não se via mais ninguém, nem sequer funcionários. Rebocando as malas, eles encontraram os elevadores. Mikhail pressionou o botão com a seta para cima. As portas abriram de imediato.

— Estás com uma carinha…

— Estou cansada, Mika. — disse ela, deixando-se encostar ao peito dele. — E é tarde. A esta hora, em casa, há muito que estava a dormir.

Mikhail abraçou-a com ternura, vendo a contagem dos andares a aumentar. Ao “14” pararam e as portas abriram. Saíram para o corredor iluminado por apliques na parede, o chão alcatifado abafava-lhes os passos. Ekaterina caminhava na frente do irmão, atenta aos números.

— É aqui. — indicou, introduzindo um dos cartões na ranhura para o efeito.

A luzinha vermelha transformou-se em verde e um clique sinalizou que a porta fora destrancada. Ekaterina teve dificuldade em empurrar a porta pesada, devido ao cansaço, mas Mikhail abriu-a como se fosse um cortinado.

O quarto iluminou-se quando ela colocou o cartão no suporte, ligando a electricidade e fazendo ouvir-se o ténue soprar do ar condicionado. Mikhail cedeu passagem à irmã para entrar. Ekaterina caminhou curiosa, observando o espaço. Mikhail seguiu-a. As paredes eram beges, um bege mais intenso pelas lâmpadas leds amarelas ligadas. Após a entrada, o pequeno corredor tinha somente um roupeiro que ficara aberto para que os novos hóspedes vissem o interior, abaixo da segunda prateleira escondia-se um cofre. Ultrapassado o corredor, o quarto era composto, à esquerda, por uma larga cama de casal com lençóis de um branco imaculado e uma coberta preta aos pés do colchão alto. A cabeceira era baixa e tinha dois grandes almofadões encostados e outras duas almofadas mais jeitosas para dormir. Uma mesa de cabeceira de cada lado, ambas com os candeeiros ligados, compunham a cama.

Ekaterina encostou a mala à cama. Mikhail deixara a sua perto do roupeiro e parara atrás da irmã. Ela sentou-se no colchão confortável e pousou os olhos no rosto do irmão. Bateu com a mão na coberta.

— Quando fiz a reserva, ainda era suposto ser o Tiago a vir comigo. — justificou, como se ele tivesse perguntado. — Espero que não te importes de partilhar a cama comigo.

— Até parece que nunca dormimos na mesma cama. — respondeu, desvalorizando a situação.

— Éramos miúdos. — recordou ela, sorrido com alguma saudade.

— Somos irmãos, Eka. Partilhar uma cama não tem qualquer importância.

— Eu sei, Mika.

Mikhail largou o casaco e a camisola na cadeira sem braços arrumada no canto do quarto, mesmo em frente à cama e junto aos cortinados, altos blackouts fechados que escondiam as grandes janelas de três folhas com uma vista fabulosa para o rio. Ele tirou o telemóvel do bolso e digitou uma nova mensagem que a noiva só iria ler quando acordasse.

Ekaterina olhou para a porta na parede oposta às janelas. Levantou-se da cama e abriu-a, confirmando que se tratava da casa de banho. O irmão largou o telemóvel na mesa de tampo redondo baixa junto à cadeira e aproximou-se dela, colocando as mãos nos seus ombros.

— Vamos descansar?

Ela voltou-se para ele, encostou a cabeça no seu peito e abraçou‑lhe a cintura.

— Obrigada, Mika! Obrigada por teres vindo comigo.

Ele apertou-a nos seus braços e beijou-lhe os cabelos.

A parede que encarava a cama tinha um televisor de ecrã plano, muito fino, aparafusado entre dois espelhos de um metro de largura pela altura total do quarto. Abaixo da televisão, um pequeno móvel que escondia o minibar. Eles abriram as malas no chão, entre esse móvel e o corredor.

Ekaterina despiu o casaco de malha e descalçou as sapatilhas. Enfiou a mão na sua mala e retirou tudo o que precisava.

— Vou mudar de roupa para me deitar. — disse ao irmão que espreitava pelos cortinados para ver a noite lisboeta lá em baixo, a escuridão em que o rio se mergulhava, as luzes da Ponte Vasco da Gama e os pontinhos luminosos na margem oposta que ele não fazia a mínima ideia do que seria.

A casa de banho era forrada a azulejos azuis. O chão era em tijoleira creme, quase do mesmo tom que a alcatifa do quarto. Tinha um espelho enorme acima do lavatório em porcelana preta sobre um móvel com portas da mesma cor. A sanita fazia conjunto e ainda tinha a fita que certificava a higienização. Ao fundo do pequeno espaço, uma cabine de duche com duas portas em acrílico emolduradas entre as paredes maiores. Ekaterina teria apreciado um duche rápido, mas sentia-se demasiado cansada. Pousou o necessaire no lavatório e depositou o pijama sobre o tampo da sanita. Abriu o fecho da bolsa e retirou os artigos de higiene pessoal, bem como os medicamentos que teria de tomar para controlar o avanço do “bicho”. Largou dois comprimidos na mão e engoliu-os a seco. Respirou fundo, desejando não voltar a ter complicações de saúde que lhe pudessem estragar a estadia. Se tinha direito a algum desejo, gostava que o “bicho” lhe desse tréguas enquanto estivesse em Portugal. Diante do espelho, analisou-se e sorriu para o rosto cansado, começando a desapertar os botões da blusa.

Mikhail verificou no telemóvel se a noiva teria lido a mensagem. Não viu o visto que o confirmaria. Devia já estar a dormir. Três horas de diferença, dissera Ekaterina. Olhou para as horas no telemóvel, eram quase quatro da manhã em São Petersburgo. O cansaço também lhe pesava, por isso, permitiu-se a tombar na cama, amachucando os lençóis.

A porta da casa de banho abriu-se. Ekaterina saiu, segurando a roupa que vestira ao longo desse longo dia. O pijama era composto por uma t-shirt rosa com uma elefanta azul a sorrir, que se lhe moldava ao tronco, e uns calções brancos curtos, o traje ideal para dormir em noites de Verão. Caminhou descalça pelo quarto e largou a roupa sobre a mala. Sorriu-lhe visivelmente feliz, já sem a maquilhagem e com o longo cabelo preso no toutiço com um elástico.

Mikhail levantou-se do colchão, era a sua vez de usar a casa de banho. Também retirou os seus artigos pessoais da mala e arrumou-os com os da irmã no lavatório e no armário de apoio.

Ao retornar ao quarto, a luminosidade diminuíra significativamente. Ekaterina desligara todos os candeeiros, à excepção daquele sobre a mesa de cabeceira destinada ao irmão. Ela já estava deitada, acomodada entre os lençóis e virada de costas para ele, tendo escolhido para si o lado do colchão mais perto das janelas. Mikhail não usava pijama, dormia unicamente de boxers e foi assim que largou a sua roupa na cadeira, por cima da camisola inadequada para o clima daquele país. O respirar tranquilo da irmã revelou-lhe que já dormia. Com cuidado, afastou o lençol e enfiou-se na cama a seu lado. Espreitou por cima da sua cabeça, o rosto de olhos fechados parecia sonhar. Ele debruçou-se sobre ela e beijou-lhe a face.

— Dorme bem, maninha.

Não houve resposta, o cansaço vencera-a.

Mikhail estendeu-se no colchão, mas não se conseguiu tapar. Desligou a luz e adormeceu poucos segundos depois.

 

 

 

 

VII

 

Mikhail acordou do seu sono sem ter noção donde estava. O quarto estava mergulhado na escuridão e, ao perceber que alguém dormia a seu lado, isso levou-o para a ideia de que estaria em casa a dormir ao lado de Svetlana. Porém, apesar do negrume, aquele cenário não coincidia com as noites no seu quarto, onde nunca estava assim tão escuro, não existia uma luzinha vermelha chata na parede em frente, nem outra verde perto do tecto que piscava de tempos a tempos. Ensonado, o cérebro processou a informação e trouxe-lhe à memória a véspera e a recordação donde dormia.

Tudo estava em silêncio, apenas a respiração melodiosa quase inaudível da mulher a seu lado se fazia ouvir. Virou-se na direcção oposta, atraído pelo piscar ténue do seu telemóvel. Esticou o braço para lhe pegar e tocou no ecrã, iluminando-o e provocando uma pequena onda de brilho pelo quarto. Tinha uma mensagem nova. Svetlana respondera à sua e desejava-lhe um bom dia com muitas juras de amor. Mikhail olhou para a hora a que a mensagem chegara, fora cinco minutos antes, eram cinco da manhã em Portugal.

Ekaterina rodou na cama, continuando a dormir profundamente. Iluminados pelo brilho no ecrã, Mikhail observou a irmã sem conseguir evitar a mágoa pela certeza de como o seu futuro era efémero. Acariciou‑lhe o rosto com ternura, fazendo despontar um sorriso na bela adormecida. Beijou-lhe a testa com carinho, adorava a sua irmã mais velha, amava-a como a mais ninguém e nem queria pensar no que seria a sua vida quando ela morresse. Teve vontade de chorar, tal como já chorara tantas e tantas vezes nos últimos tempos. Virou-se para a mesinha de cabeceira e devolveu o telemóvel ao seu lugar anterior. Perdera o sono e ficou a olhar para o escuro.

As memórias jorraram na sua mente, qual cascata de imagens a fluir numa corrente imparável. Deveria dormir, mas os pensamentos não o deixavam relaxar. Sem saber explicar porquê, as lembranças fizeram-no retornar ao tempo em que a irmã lhe apresentara Tiago. Ela estava tão feliz… Mikhail percebeu logo como aquele namoro era sério e não se enganou, como nunca se enganava em nada no que respeitava à irmã. Nunca lhe vira esse brilho de felicidade nos olhos, não o sabia descrever, mas era um brilho único, talvez só mesmo ele o conseguisse identificar. Não mais o vira nos olhos de Ekaterina. Sorriu para o negrume, vendo os olhos azuis da irmã na sua mente, ninguém olhava para ele como ela, com uma expressão de amor genuíno incondicional, protector e ao mesmo tempo vulnerável, confiável, seguro… Nunca a vira olhar assim para mais ninguém. Perguntou-se como seriam os seus próprios olhos, quando a observava. Haveria de lhe perguntar o que lhe diziam os olhos dele.

Virou-se para a irmã sem a ver na escuridão, somente o vulto que se elevava nas sombras. A respiração tranquila embalava-o. Teve saudades do frio russo, saudades de quando eles ficavam em casa na adolescência, enrolados num edredão, no quarto dele ou no dela, a ver um filme. Voltou a sentir a mágoa da perda, a futura perda quando a irmã deixasse para sempre este mundo. Afastou a sensação, repescando a lembrança.

Mikhail e Ekaterina sempre foram muito afectuosos entre si. Os pais torciam o nariz e consideravam estupidamente inadequado os carinhos que partilhavam. Desde crianças que se beijavam nos lábios, mas a mãe começou a condená-los por isso quando ele entrou na puberdade. Que pensaria a mãe que eles iriam fazer? Ekaterina, muito mais madura nos seus quinze anos, convenceu-o a deixarem de fazê-lo para não aborrecer a senhora e garantiu-lhe que isso não mudava nada naquele amor fraternal que só existia entre eles. Na verdade, Mikhail percebeu que Ekaterina já teria uma outra noção da vida, pois namorava e beijos na boca não era coisa para irmãos.

Ekaterina tornou a rodar na cama, agora oferecendo-lhe as costas.

As namoradas tinham ciúmes da irmã. Houve uma que lhe disse “tocas-lhes demasiado”, só porque ele tinha sempre a mão no braço ou no ombro de Ekaterina enquanto falava com ela. Também percebia nos namorados dela algum desconforto com a sua presença. Quando estavam sozinhos, os irmãos riam-se com isso e gozavam pela estupidez que era, eles e elas, sentirem ciúmes da relação deles. Aquilo que Mikhail e Ekaterina partilhavam era único, nenhum ser humano poderia substituir um na vida do outro. Contudo, a realidade é que nenhuma relação de Mikhail durou o suficiente para se tornar um compromisso, até conhecer Svetlana.

A noiva substituiu a irmã na sua cabeça. Era completamente apaixonado pela advogada. Sem querer, a mente foi invadida pelo filme que fora a noite anterior, o sexo intenso. Suspirou para o vazio. Bolas, tinham-no feito três vezes, esfomeados um pelo outro. Svetlana era uma amante fenomenal e uma companheira fabulosa. E tal como ninguém substituiria Ekaterina na sua vida, Mikhail concluiu que não existiria ninguém por quem trocasse a sua noiva. Foi uma certeza tão intensa que adormeceu.

 

 

A claridade ténue despontou por entre a singela abertura dos cortinados, insuficiente para causar mossa a quem queria dormir. Ekaterina acordou naturalmente, abrindo os olhos devagar, virada para as janelas escondidas, consciente donde estava. O lençol fora parar ao fundo da cama, o silêncio era geral não fosse o roncar baixinho atrás de si. Ela esticou a mão para o telemóvel e deu um toque no ecrã para ver as horas, eram oito da manhã em Portugal. Virou-se na cama para observar o irmão. Mikhail dormia profundamente, de barriga para cima com o peito musculado a subir e a descer devagarinho. Ekaterina nem percebeu que sorria, sentia-se feliz. A vida não era perfeita, não esquecera que tinha os dias contados mesmo não sabendo quantos, mas iria impedir que as coisas tristes lhe ensombrassem a felicidade por cumprir um sonho e estar a fazê‑lo com o irmão, a pessoa que mais amava no mundo.

A notícia do cancro derrubara-a, tentara escondê-lo, mas derrubara-a. Lutou para se reerguer e não deixar que o marido tivesse noção do impacto, quando lhe contou. Tiago mostrou-se solidário e ela sentiu uma ligeira tristeza por constatar que o conseguira enganar, ele não percebera como estava afectada. Quando contou ao irmão… Foi ele que a tentou enganar, mostrando que acreditava que ela encaixara bem a fatalidade, só que Ekaterina leu no olhar do irmão que fracassara, Mikhail sabia perfeitamente o que ela estava a sentir e sentia-se grata por isso. A seguir, a separação de Tiago, nova cacetada na vida, afinal o marido não era o homem que ela julgara e dispensara-a sem pensar duas vezes, quando lhe deu abertura para isso. E depois, quem lá estava para lhe amparar a queda? Mikhail, o irmão.

Com cuidado, Ekaterina colocou a mão no braço dele sem o acordar. Sabia como ele sofreria com a sua morte, não era difícil percebê‑lo, bastar-lhe-ia pensar o que sentiria ela se visse o irmão morrer. Ele tentava esconder-lhe o sofrimento, mas aqueles olhos azuis nunca a conseguiram enganar, não seria agora. A forma como ele sempre a olhava provocava‑lhe um calor no coração, Mikhail não olhava assim para ninguém, nem para Svetlana. Sentia-se sempre protegida junto dele. Riu-se para ninguém, recordando que nem sempre fora assim.

Ekaterina pensou nos tempos de menina em que o irmão era um bebé, adorava ficar a vê-lo dormir no berço e que a mãe lhe deixasse pegar‑lhe. Quando Mikhail foi para a sua escola era um rapazinho franzino. Os mais velhos gostavam de meter-se com ele, talvez para a provocar a ela. Ekaterina tornava-se uma leoa feroz se alguém se atrevesse a tocar no irmão.

A respiração tranquila dele tinha o condão de a tranquilizar. Olhou para o rosto adormecido, a boca entreaberta. Sem saber porquê, recordou os tempos em que trocavam beijos fraternais nos lábios. Porque haviam deixado de o fazer? Ah… a mãe. Acariciou-lhe o braço com uma pontada de culpa, pois não fora de facto a mãe a culpada. Ekaterina tinha quinze anos, namorava e já trocava beijos bem profundos com os rapazes. Era uma rapariga madura, mas não tão madura que tivesse tido consciência de como estava a ser estúpida por confundir esses beijos com os que inocentemente o irmão trocava consigo. Naquela altura, sentira‑se desconfortável e agora recriminava-se por isso. Quase como se pedisse desculpa, beijou-lhe o ombro.

Mikhail não acordou, mas rodou na cama e ficou virado para ela. Desperta, Ekaterina ficou a contemplar o rosto do irmão. Ninguém a completava tão bem espiritualmente como ele. Tornou a deixar-se levar nas recordações, as tardes de neve em São Petersburgo em que os manos adolescentes se enrolavam juntos num edredão a ver filmes. Ele tinha a pachorra de ver comédias românticas com ela e Ekaterina compensava-o com a partilha de filmes de acção, cheios de tiros e pancada. É claro que também havia longas-metragens e séries que viam com o mesmo interesse. Quem lhe dera poder retornar a essa época, um tempo em que a vida parecia abrir-lhe todas as portas e não havia um tumor a matá-la.

Apesar de dormir profundamente, Mikhail levantou o braço e colocou-o sobre ela, puxando-a para si. Ekaterina deixou-se ir. A mão dele deslizou para a sua anca e apertou-lhe a nádega.

Acho que me estás a confundir com alguém, maninho.

Riu-se. Mikhail era o homem mais carinhoso que conhecia. Porém, também sabia como ele ficaria envergonhado se soubesse que estava a apalpar a irmã. Cuidadosamente, puxou-lhe a mão e depositou-a devagarinho na perna dele.

— Mika! — sussurrou. — Mika! — O tom melodioso e arrastado da voz dela acordou-o. Mikhail abriu os olhos devagarinho. — Bom dia, dorminhoco.

Mikhail sorriu e voltou a cerrar as pálpebras, questionando com a voz arrastada:

— Que horas são?

— É quase meio-dia. — respondeu divertida.

— Mentirosa! — ripostou ele, sorrido e mantendo os olhos fechados.

Ekaterina elevou-se na cama e baixou o rosto sobre o dele, espetando-lhe um beijo na bochecha.

— Vamos a levantar.

Entusiasmada, saltou da cama e avançou para os cortinados, abrindo-os com puxões vigorosos. A claridade e os raios solares invadiram o quarto numa explosão de luz.

— Foda-se, Eka! — protestou ele, tapando o rosto com a almofada dela.

— Tento na língua, menino. — advertiu, fingindo-se ofendida.

Mikhail não disse nada e manteve-se escondido por baixo das almofadas.

Ekaterina contornou a cama e baixou-se junto da sua mala para escolher a roupa. Olhou para a janela, o dia estava lindo e iria tornar‑se bem quente. Retirou umas cuecas e escolheu uma t-shirt azul e uns corsários encarnados. Por fim, recuperou o sutiã da véspera e seguiu para a casa de banho. Antes de fechar a porta, disse:

— Vou tomar um duche. Não te deixes dormir.

Mikhail ripostou com um som concordante. Envolto na penumbra dos travesseiros, ouviu o som da água a correr, calculou que entre o duche e arranjar-se, Ekaterina demoraria o suficiente para…

— Então?

A voz aborrecida da irmã acordou-o com força e quase o fez saltar. Merda, adormecera por completo. Abriu os olhos estremunhado e viu Ekaterina com as mãos nas ancas, vestida com a t-shirt azul e os corsários vermelhos com bolsos.

— Desculpa! — pediu, erguendo-se da cama ensonado.

Ela atravessou o quarto até às janelas e sentou-se na cadeira.

Mikhail arrastou-se até à sua mala e procurou a roupa. Puxou uns boxers debaixo da roupa maior. Que haveria de vestir? Pelo calor que se antevia, o melhor seria ir só com os boxers para a rua. Como obviamente isso não era hipótese, teria de escolher algo.

— Queres que te escolha a roupa? — interrogou Ekaterina, vendo a hesitação dele, debruçada para o chão a apertar as sapatilhas brancas.

— Eu já trato disso. — Mikhail desistiu da decisão e seguiu para a casa de banho. — Não demoro.

E não demorou. O duche foi rápido, barbeou-se com a máquina, penteou o cabelo e perfumou-se.

Ekaterina aguardava em pé, diante das janelas a apreciar a paisagem. Mikhail viu-a de costas, orgulhoso por a irmã ser uma das mulheres mais bonitas que conhecia. Svetlana tivera razão na véspera, ela estava mais magra, mas conservava todas as curvas que deixariam qualquer homem caidinho. Ekaterina deu pela sua saída sem se mexer, parecia perdida em pensamentos. Ele voltou à mala e decidiu-se por uma t-shirt branca com o símbolo do Zenit e umas calças de ganga preta. Vestiu‑se. A irmã parecia uma estátua.

— Estás bem, Eka?

— Sim. Estou a apreciar a paisagem.

Mikhail aproximou-se e parou atrás dela. Abraçou-a e beijou-lhe a nuca junto da fita que lhe prendia os longos cabelos louros num rabo‑de‑cavalo. Ela apertou os braços dele sobre a sua cintura.

— É uma vista magnífica.

— E estranhamente familiar, Mika.

— Ainda a pensar na sensação de ontem?

Ekaterina libertou-se do abraço e voltou-se para ele.

— Não foi estranho? — Mikhail anuiu. — Era como se já aqui estivesse estado.

— Nunca fizeste escala neste aeroporto? — sugeriu ele num tom brincalhão.

— Não gozes. Tu também o sentiste. E tu mal sais de São Petersburgo.

— Fui às Maldivas contigo.

— Não fizemos escala aqui. — retorquiu desdenhosa.

Mikhail riu e desvalorizou a situação.

— A chegada, o cansaço… Era noite, as luzes… Sei lá, Eka. Qualquer coisa pareceu às nossas cabecinhas cansadas que isto nos era familiar. — Olhou para o exterior. — Olha, estou a ver a paisagem lá fora e nada me parece familiar.

Ekaterina abanou a cabeça e afastou-se. Pegou numa pequena malinha que colocou a tiracolo contendo o seu passaporte, a carteira e o telemóvel.

— Podes guardar o meu? — pediu ele, entregando-lhe o passaporte.

— Sou tua mãe? — atirou, provocadora, fingindo estar aborrecida. — Para guardar as tuas coisas?

— És minha irmã, vai dar ao mesmo. — respondeu gozão. — Vá lá, já tenho a carteira e o telemóvel nos bolsos. Não me cabe o passaporte.

Ekaterina sorriu e piscou-lhe o olho, segurando no livrinho e guardando-o na malinha.

 

 

 

O mapa da rede das linhas do Metropolitano de Lisboa não era tão complexo, nem tão grande, como o metro de São Petersburgo, mas para quem não conhecia, como era o caso dos irmãos, descodificar para onde queriam ir não era fácil. Mikhail nem tentava, estava tudo escrito em português. Ekaterina fizera pesquisa e, pelo menos, entendia o que as palavras queriam dizer. Mesmo assim, socorreu-se dos apontamentos no telemóvel.

A Estação Oriente tinha um fluxo humano bem maior que na véspera, quando chegaram a meio da noite. Havia lojas abertas e uma espécie de feira do livro entre as escadas rolantes. Eles estavam um piso mais abaixo, a olhar para o mapa da cidade e para as linhas vermelha, amarela, verde e azul. Ekaterina partilhara os planos com o irmão para aquele dia durante o pequeno-almoço tomado de forma apressada no hotel. Queria aproveitar o dia ao máximo.

— Estamos aqui. — apontou com o dedo indicador direito. — E queremos ir para aqui. — O indicador esquerdo estava sobre a Estação do Rossio. — Vamos ter de mudar de linha… — O dedo direito avançou pela linha vermelha. — …aqui.

— Almevda?

— Alameda, Mika. — corrigiu com o arranhar do sotaque russo.

— Que merda de língua.

— Não sejas assim, não é tão difícil quanto pensas. Aliás, fica sabendo que o russo e o português são idiomas parecidos.

Mikhail olhou-a incrédulo.

— Pois… Devem ser, devem.

Ultrapassaram os torniquetes passando os seus Lisboa Card pelos leitores. Desceram as escadas para a mesma plataforma por onde haviam chegado na véspera.

— Sao Sebástiao, Eka?

— Sim, São Sebastião. — confirmou rindo-se.

Apesar do sotaque russo pronunciado, Ekaterina conseguia proferir relativamente bem a fonética portuguesa.

As composições não vinham cheias, mas tinham mais pessoas. Eles destacavam-se entre os locais, um homem com quase um metro e noventa de altura, louro de olhos azuis, porte semelhante a um armário acompanhado por uma loura de olhos azuis, cerca de vinte centímetros mais baixa, expressão sedutora e elegante como uma garça não eram o quadro mais comum entre portugueses. Mikhail reparou nos olhares curiosos, mas percebia que muitos se deviam à beleza da irmã.

— Saímos aqui, Mika. — informou quando a voz gravada anunciou “próxima estação: Alameda”.

As portas abriram. Muitas pessoas saíram com eles, outras tantas entraram.

— E agora, Eka? — perguntou ao mesmo tempo que caminhavam pela plataforma.

— Seguimos as indicações.

A linha vermelha e a linha azul não ficam logo ao lado uma da outra. Eles tiveram de passar os torniquetes, como quem vai sair da estação, prosseguir por uma área comercial parecida com um túnel e desembocar no outro sector da estação. Voltaram a usar os cartões nos torniquetes e desceram pelo lado que lhes indicava como destino o Cais do Sodré.

O Sol incidia com força na cidade, mas a manhã não se apresentava mais quente que o normal para a época. Mikhail e Ekaterina subiram as escadas e deram por si numa pequena praça, talvez pequena para os padrões russos deles. A Praça da Figueira tinha um mercado de rua a funcionar, as pessoas circulavam a diferentes velocidades e a presença de turistas era evidente. Os autocarros sucediam-se, tal como pequenos veículos turísticos com um condutor e dois ou três passageiros. Num dos lados da praça, uma linha de táxis aguardava clientes. Um rapaz com um panfleto na mão interpelou-os, falando em inglês. Os irmãos dificilmente escapariam à imagem de turistas, daí o rapaz surgir convidando-os para passeios turísticos pela cidade. Ekaterina declinou e o rapaz, talvez olhando para a envergadura do homem ao lado dela, não insistiu.

Mikhail observou a praça, os edifícios que nada tinham a ver com os da sua cidade. Viu o castelo lá no alto, a bandeira de Portugal a dançar ao sabor da brisa.

— Vamos por aqui, Mika.

Ekaterina segurava o telemóvel com a aplicação do Google Maps aberta. Conduziu o irmão pela Rua do Amparo e foram dar à Praça D. Pedro IV, mais conhecida por Rossio. Atravessaram a estrada, aproveitando que o semáforo estava verde para os peões, e pararam perto da estátua do rei que lhe dava nome.

— Estamos na zona histórica, Mika. Esta é uma das praças principais da cidade. — Olhou em redor, fechou a app e clicou no ícone da máquina fotográfica. — Tiras uma selfie de nós? Tens o braço mais comprido.

Mikhail colocou o braço esquerdo sobre os ombros da irmã, esticou o direito e enquadrou os dois rostos de óculos-escuros com a fachada do Teatro D. Maria II atrás e clicou no ecrã.

— A nossa primeira foto da viagem. — legendou, recuperando o telemóvel para fazer mais algumas capturas.

Desceram o Rossio para sudoeste numa passada turística calma. Ekaterina revelava-se encantada por ali estar, todo o ambiente à sua volta lhe oferecia uma sensação de conforto, a estranha sensação de estar em casa. Mikhail sentia-se um mero viajante a conhecer um sítio novo. Ela tivera muito tempo para planear a estadia, sabia onde queria ir e por onde passar, o Google Maps era somente um auxiliar para não se perderem. Tornaram a atravessar a rua, desta feita para a extremidade oposta da praça.

O guia virtual no telemóvel indicara-lhe que o café de estilo antigo que se lhes deparou era um lugar emblemático da cidade. Escolheram uma mesa na esplanada do Café Nicola e sentaram-se. A sombra providenciada pelos guarda-sóis atenuava o calor, uma temperatura amena para os lisboetas e quente para os russos.

Um empregado de mesa acercou-se deles. Habituado à presença de turistas, nem tentou adivinhar se saberiam falar a língua de Camões e recebeu-os em inglês. Ekaterina tentou a sua sorte em português:

— Doís cáfes, pór favor.

Viu a surpresa no rosto do empregado, o qual sorriu gentilmente e anuiu.

— O que é que disseste, Eka?

— Pedi dois cafés.

— Parecia que estavas a tossir. — provocou-a.

Ekaterina atirou-lhe um sorriso torcido.

— Engraçadinho.

O funcionário regressou com os cafés e depositou-os sobre a mesa. Ekaterina pegou na sua chávena, enquanto Mikhail abria o pacote de açúcar.

— Bebe-se melhor sem açúcar, Mika. — avisou com humor. — Ainda não largaste o açúcar no café?

Mikhail abanou a cabeça e despejou o pacote para a chávena.

Ekaterina bebeu o seu, era mais forte que aquele a que estava habituada.

— Hum… É diferente do que bebemos na Rússia. Mas, é saboroso.

Mikhail bebericou o seu, franziu o rosto e devolveu a chávena ao pires.

— Que se passa? Não gostas.

— É amargo. — respondeu, pegando no açúcar da irmã.

— Tu não vais… — Antes de acabar a frase, Ekaterina viu o irmão despejar o segundo pacotinho no café. — Isso não te faz bem, Mika.

— Importas-te de deixar a médica em casa?

— É para teu bem.

Mikhail olhou-a sério.

— Preocupamo-nos com merdas e depois há outras coisas que nos matam. — Viu a irmã perceber ao que se referia, o que lhe roubou alguma da alegria do dia. — Desculpa, Eka. Sou uma besta.

— Esquece, Mika. — Voltou a sorrir. — Não deixas de ter uma certa razão. Eu é que era a saudável. E eu é que me fodi.

— Tento na língua, menina! — advertiu, imitando a irmã.

Ambos soltaram uma gargalhada divertida.

O passeio continuou pela via pedonal da Rua do Carmo até às escadas adjacentes ao Elevador de Santa Justa.

— Subimos?

Mikhail assentiu, olhando para a fila de turistas que esperavam.

Os cartões para andar nos transportes públicos da cidade também lhes permitiam subir no elevador sem custos adicionais. A estrutura em ferro fundido erigida no início do século XX era mais um ponto turístico, construído para facilitar a subida da colina aos habitantes, mas que actualmente só servia para deleite dos visitantes.

— Isto é seguro, Eka?

— Não sejas parvo.

As portas do ascensor foram abertas por dentro. Um homem fardado agradeceu aos turistas que saíram e cumprimentou os que se preparavam para entrar, verificando os bilhetes que lhe iam mostrando. Mikhail encostou-se a um dos cantos e Ekaterina encostou-se a ele, deixando-se envolver no abraço distraído do irmão. O homem tornou a fechar as portas e pressionou uma alavanca que deu início à subida numa toada lenta.

Mikhail parecia tenso e Ekaterina notou que ele estava realmente com receio. Rodou para colocar o braço à volta da cintura dele e deu‑lhe um beijo na face, dizendo:

— Não tenhas medo.

— Achas? — A pergunta veio com um tom quase indignado. — Medo, eu. Puff…

O elevador imobilizou-se no topo. O senhor voltou a abrir as portas para os passageiros saírem. Quatro pessoas, igualmente com ar de turistas, aguardavam para entrar no lado oposto por onde eles abandonavam o transporte.

O vento soprava mais forte, por ali, atravessando a rede sobre os parapeitos feitos no mesmo ferro fundido que impediam que algum maluco se atirasse dali. Ekaterina parou junto da rede e fez algumas fotografias. Mikhail reparou na escada em caracol com um sinal azul e uma seta branca por onde alguns dos companheiros de subida já escalavam.

— Podemos subir mais, Eka.

— Não tens medo? — questionou, rindo-se.

— Depois de ti. — indicou, apontando para os degraus.

A escada era apertada, largura suficiente para uma pessoa, daí que existisse outra idêntica para descer. O acesso levava-os ao topo da torre, mesmo por cima donde estaria o mecanismo por onde rolavam os cabos que movimentavam o elevador. Havia mesas e um pequeno quiosque que vendia bebidas e bolos. Ekaterina encostou-se ao corrimão, encantada com a vista, a Baixa Pombalina, o Rossio, o Arco da Rua Augusta, o castelo na outra colina, o rio Tejo…

— Adoro esta cidade!

— Só por isto, Eka?

— Não te sei explicar, Mika. — confidenciou. — Sinto-me bem aqui.

O trânsito ecoava lá em baixo, buzinas, uma sirene ao longe, outra mais perto. Os sons da cidade eram melodiosos para os ouvidos dela. Eles caminharam vagarosamente pelo terraço, observando a paisagem pelos quatro cantos do miradouro. O Sol quente não queimava, parecia mais abraçar a pele de Ekaterina, recebendo-a naquele regresso… Qual regresso? Ela não sabia explicar, apenas sentir.

Após inúmeros disparos com a câmara do telemóvel, entregou o aparelho ao irmão e pediu:

— Mais uma nossa?

Ele fez-lhe a vontade com todo o gosto.

Desceram pela escada correcta. Não repetiram a viagem de elevador. Ao invés, atravessaram a ponte idêntica à torre que se erguia sobre a Rua do Carmo. Ekaterina parou a meio e fez algumas fotos lá para baixo.

Ao chegar ao outro lado, depararam com um monumento em ruínas. Mikhail ficou a olhar para o edifício com curiosidade. Ekaterina respondeu-lhe sem que ele tivesse de fazer qualquer pergunta:

— É um antigo convento. Ficou destruído durante um terrível terramoto há quase trezentos anos.

— E ainda não o restauraram? — interrogou incrédulo.

Ekaterina riu-se.

— Acho que a ideia é mantê-lo assim. É uma atracção turística.

Caminharam de mão dada ao longo das ruínas, vindo sair no Largo do Carmo. Ekaterina viu o chafariz e pediu ao irmão que lhe tirasse uma foto ali.

— Estou a ver que vais afogar o Instagram em fotos, esta noite. — disse-lhe, devolvendo o telemóvel.

Ekaterina consultou os apontamentos e o guia da cidade nas apps. Tornou a abrir o Google Maps e centrou a sua localização para perceber por onde deveriam ir.

A manhã avançava tranquila e animada, Mikhail congratulava-se por ver a felicidade nas expressões da irmã. Passearam pelos passeios de mão dada, os dedos entrelaçados, conversando e rindo.

A Brasileira, outra pastelaria histórica de Lisboa, deparou-se diante deles quando contornaram a esquina para o Largo do Chiado. Ekaterina quis replicar a foto que já vira em vários guias de viagem da cidade, uma foto sentada na esplanada com a estátua do poeta Fernando Pessoa.

— Mais uma para o Instagram.

— Cala-te, Mika!

Riram-se e ela saltou-lhe para o pescoço, fustigando-lhe a face com beijos.

— Estou tão feliz por aqui estar. — confessou. — E feliz por partilhar isto contigo, maninho.

Mikhail elevou-a o suficiente para os seus pés perderem o contacto com o chão, o que a fez soltar um protesto fingido. Quando a devolveu ao chão, beijou-lhe a testa.

— Adoro-te, Eka!

— É impossível não me adorarem. — ripostou, representando um papel de mulher altiva com ares snobs que nada tinham a ver consigo. Soltou uma gargalhada divertida. — Também te adoro, maninho!

 

 

 

 

VIII

 

O Mercado da Ribeira foi o local escolhido para o almoço. Ekaterina lera nas sugestões para os visitantes que era um lugar catita para fazer refeições. Seguindo o itinerário que o Maps lhe dava, desceram a Rua do Alecrim até à Praça Duque da Terceira e, antes do Cais do Sodré, continuaram pela Avenida 24 de Julho até ao edifício carismático defronte da grande estação ferroviária e terminal de barcos do Cais do Sodré. A entrada era semelhante a um mercado de bairro, mas atravessando para a zona de refeições, os balcões de oferta alimentar multiplicavam-se por inúmeras escolhas. O centro, aquilo que um dia teria sido o recinto de vendedores, era agora ocupado por mesas altas e bancos onde os clientes se acomodavam a saborear as refeições compradas. O ar moderno contrastava com a área mais rústica da entrada.

Mikhail e Ekaterina encontraram dois lugares vagos numa das linhas de mesas. Comeram um hambúrguer com batatas fritas e beberam cerveja portuguesa, mais uma novidade. Nem pensaram estar tão esfomeados até sentirem o cheiro a comida no interior. Mikhail abstraía‑se dos diálogos à sua volta, a maior parte eram naquele idioma incompreensível. Contudo, Ekaterina fazia o contrário, absorvia todas as falas que conseguisse, registando os sotaques para mais tarde treinar e corrigir a forma como falava, quando se aventurava no português.

O tempo que permaneceram ali foi o suficiente para saciar a fome. Quando regressaram à rua, atravessaram a avenida e entraram na estação ferroviária só para conhecer o sector mais antigo.

O Sol começava a mostrar-se bem forte e intensificava o céu azul ausente de nuvens. Os irmãos contornaram a Praça Duque da Terceira, sempre de mão dada, o gesto era automático e quase nem se apercebiam que o faziam. Passaram pelo Cais da Ribeira das Naus vendo um dos barcos que cruzam o rio a chegar e a anunciar a sua presença. Um pouco mais à frente, muitas pessoas ocupavam uma esplanada virada para o rio. E, a seguir, alcançaram a Avenida da Ribeira das Naus.

Ekaterina parou para mais umas fotos. A antiga doca fora transformada numa espécie de praia fluvial citadina com um passeio largo por onde se caminhava paralelo ao Tejo. A rampa em escadinha convidava a parar, foi o que eles fizeram.

Sentaram-se nos degraus, suficientemente perto sem que a água lhes tocasse. Ekaterina dobrou os joelhos e abraçou as pernas com o olhar perdido na água. Mikhail, a seu lado, esticou as suas e apoiou as mãos nas pedras quentes.

— Isto é lindo! — afirmou Ekaterina. — Será que quem aqui vive tem noção da sorte que tem?

— Já pensaste que muitos turistas colocarão essa questão sobre São Petersburgo, quando a visitam?

Ela olhou para ele.

— Queres dizer que valorizamos mais o que não temos, não é?

— Não sei se será o caso. Concordo que isto é bonito, mas não trocava a minha cidade por esta.

Ekaterina ponderou a questão, concluindo que também não se via a viver noutra cidade que não fosse São Petersburgo. De imediato, o seu rosto ensombrou-se, recordando-se que essas questões não se colocavam a pessoas como ela, cujo futuro era efémero.

— Estás bem?

Ela não forçou o sorriso para o descansar, limitando-se a anuir.

— Parece que estamos na praia. — partilhou para se abstrair do pensamento.

— É tal e qual as Maldivas. — concordou Mikhail irónico.

Ekaterina deu-lhe uma palmada no braço.

— Parvo. Não é uma praia dessas.

— Foram umas belas férias.

— Tu foste um amor, Mika. Pediste aos pais que o teu presente de formatura fosse uma viagem para lá porque sabias que eu queria lá ir.

— O teu namorado na altura não achou muita graça.

— Sim, ele queria ir comigo. — recordou ela. — Quando lhe expliquei que o presente era teu, indignou-se por quereres levar a irmã, em vez de uma namorada.

— Nem tinha namorada nessa época.

— E o meu namoro terminou no regresso. — concluiu sem qualquer mágoa. — Nem era bem um namoro. Era mais uma amizade colorida. — Riu-se. — Dávamos umas quecas.

— Poupa-me os pormenores, Eka.

Ekaterina tornou a encará-lo, a expressão era de desafio.

— Que foi? Achas que a tua irmã não faz sexo?

— Sei que sim, mas não preciso de saber pormenores.

— Na verdade, desde que o Tiago saiu de casa que eu não sei o que isso é.

Mikhail esticou a cabeça e começou a olhar em redor. Ela ficou tensa, julgando que algo se passava. Ele voltou a olhar para ela, encolheu os ombros e disse:

— Há por aí muitos Tiagos para matares saudades.

— Estúpido!

Ele riu-se e tentou abraçá-la, mas Ekaterina afastou o irmão.

— Tens uma gracinha…

— Vá lá, era a brincar.

Tentou abraçá-la outra vez e ela deixou.

— Gostei muito das férias nas Maldivas, Eka.

— Eu também.

O vento voltou a soprar forte, mas acalmou de imediato. Outro barco zarpou do cais. Um cargueiro vinha a entrar no rio, rumo ao porto da cidade. A nascente, dois enormes navios de cruzeiro permaneciam atracados na margem. Ao vê-los, Ekaterina disse:

— Nunca fiz um cruzeiro. Gostava de o ter feito.

Atrás deles, alguns carros circularam em ambas as direcções. Alguém apitou. Um grupo de jovens caminhava no passeio a falar alto, contando piadas.

— A vida pode ser tão simples, quando nos permitimos a isso.

— Eu desperdicei oito anos da minha.

— Não vejas isso assim, Eka.

— Não me vou enganar, Mika. Há coisas que teria feito se não estivesse com o Tiago. Certamente, teria viajado mais, quem sabe não teria feito o tal cruzeiro.

— As coisas aconteceram como tinham de acontecer, Eka.

— É difícil aceitar isso dessa forma, quando se está no fim da vida. — confessou, observando a água a embater devagar nas pedras.

Ficaram em silêncio, um silêncio prolongado, uma ausência de diálogo de alguns minutos. Pareciam hipnotizados pela corrente fluvial tranquila. Ekaterina olhou para o irmão e sentiu um aperto no peito ao ver uma linha húmida no seu rosto, abaixo da lente escura. Não falou, mas agarrou-lhe a mão e acariciou-lhe os dedos.

— Continuamos?

Mikhail anuiu.

Ergueram-se da escadaria já com a água mais perto. Não deram as mãos, Mikhail colocou o braço sobres os ombros da irmã e Ekaterina envolveu-lhe a cintura com o seu.

 

 

 

— Ora aí está uma praça mais imponente, Eka.

Os irmãos tinham caminhado até ao Cais das Colunas e agora observavam a Praça do Comércio de costas voltadas para o rio.

A área desenhava um quadrado perfeito por onde muitas pessoas caminhavam em todas as direcções. Em volta, os edifícios amarelos contornavam-na em três lados, somente a sul não havia construções, permitindo a visão do rio. No centro, a estátua de outro rei da História do país, D. José I a cavalo. Havia ruas a nascente e poente, mas só veículos autorizados poderiam passar por aí. O trânsito fluía entre eles e a praça.

Após mais uma foto às colunas onde há muito não atracavam embarcações, eles aguardaram junto da larga passadeira no asfalto até que o semáforo lhes autorizasse a travessia. As extremidades dos edifícios eram finalizadas por duas torres quadrangulares da altura dos restantes. Todos os pisos térreos eram compostos por arcadas e muitas serviam de espaço a esplanadas de vários bares e restaurantes. Os turistas fervilhavam por ali e a cacofonia de vozes era grande.

Mikhail e Ekaterina atravessaram a praça para norte, direitos ao Arco da Rua Augusta, mais um lugar listado nos apontamentos dela para visitar. Atravessaram a estrada nas passadeiras, na ponta oposta por onde haviam entrado, evitando os autocarros, os eléctricos e os táxis. Procuraram a entrada para visitar o Arco e encontram a porta para a bilheteira depois de passarem por baixo daquela espécie de Arco do Triunfo.

Mikhail percebeu o diálogo com a funcionária do balcão porque, desta vez, Ekaterina não se aventurou a falar português. Simpática, e vendo que eles eram turistas, questionou-os se teriam o Lisboa Card. Isso valeu-lhes a oferta dos bilhetes.

A vista no topo era magnífica. Haveria certamente miradouros com uma amplitude maior de horizonte e mais altos, mas aquele era especial por oferecer uma vista total da praça. Para além disso, a imponência das estátuas de Glória a coroar o Génio e o Valor metia respeito. O Sol a bater nas águas do rio faziam-no brilhar forte naquele ângulo. O calor intenso era rebatido a espaços pelo vento lá em cima. Ekaterina colocou‑se entre os braços esticados do irmão e mais algumas selfies foram feitas para o álbum da viagem.

Quando regressaram à rua, continuaram para norte. A Rua Augusta era pedonal e eles avançaram por entre dezenas e dezenas de pessoas. Havia muitas lojas, mas algumas já não funcionavam e uma ou outra pareciam abandonadas. Viram artistas de rua a tentar ganhar a vida, tocando, cantando, dançando ou representando em troca de uns euros. Ekaterina deixou moedas a todos. Aquela era uma das ruas mais circuladas na Baixa, fosse por turistas ou pelos habitantes. A oferta de esplanadas era significativa e muito do espaço entre o Arco e o Rossio era ocupado por mesas cobertas por guarda-sóis.

— Regressámos ao Rossio, Mika. — informou quando atravessaram a passadeira da Rua da Betesga. — Cansado?

— Não.

— Eu confesso que estou. Que me dizes a voltarmos ao hotel?

Ele sorriu-lhe e anuiu.

 

 

 

A densidade de pessoas era muito maior nas composições, nem faziam ideia de que àquela hora já muitas pessoas saiam dos empregos e regressavam a casa nos transportes públicos. No primeiro trajecto nem conseguiram lugar para se sentarem, mas Mikhail encostou-se ao lado da porta que não abria e Ekaterina apoiou-se nele e no seu abraço. No segundo percurso, a densidade humana não diminuiu.

O Sol brilhava intenso, mas as sombras já cobriam o grande passeio na saída sul da Estação Oriente. Sem terem essa intenção, eles repetiram o caminho da véspera até ao hotel, agora cruzando-se com mais gente.

Enquanto subiam no elevador do hotel, Mikhail consultou o telemóvel para ver se tinha mensagens.

— Novidades da Lana, Mika?

Ele abanou a cabeça.

O quarto estava escuro, parecia uma regra do pessoal que vinha arrumar os quartos, deixar os cortinados fechados. Ekaterina avançou pelo quarto, direita a eles, e abriu-os para ver a tarde solarenga lá fora. Tudo estava arrumado e as camas imaculadas como na véspera. O ar condicionado ligado mantinha a temperatura num nível ideal.

— São nove horas em São Petersburgo. — calculou Mikhail. — A Lana já deve estar em casa. Vou ligar-lhe.

— Eu vou tomar um duche. Dá-lhe um beijo meu.

Mikhail dedilhou o ecrã. Atrás de si, Ekaterina vasculhou algo na mala e fechou-se na casa de banho. Ele clicou no ícone de chamar, por baixo do nome da noiva, e ficou a olhar para a rua ao mesmo tempo que ouvia o sinal.

— Olá, querido!

— Olá, meu amor!

— Como estás?

— Bem. E tu?

— Cansada. O dia foi estafante, tive duas reuniões com clientes e outra de trabalho com a equipa de um novo processo. Cheguei há pouco. — Svetlana suspirou, mas depois animou o tom da sua voz. — E vocês? Que tal o primeiro dia?

— Foi bom. Também cansativo, mas por outras razões.

— Quem me dera cansados desses, Mikhail. E a Ekaterina? Está a gostar?

— Está a adorar. Manda um beijo para ti.

— Como é que ela está? Tem-se sentido bem?

Mikhail ouviu o som da água a correr na casa de banho.

— Felizmente sim, não tem tido sintomas do… Tem estado bem.

— Ainda bem, meu amor.

— Esta viagem está a ser boa para ela. Dá para ver como está feliz.

— Ela merece, amor. Ambos sabemos que não tem tido uns últimos tempos fáceis.

Ele ficou em silêncio, ensombrado pela lembrança do sofrimento da irmã. Olhou para o exterior, para a coloração amarela a fugir para o laranja da claridade do Sol a bater na margem oposta. Aquele dia estava a terminar, menos um dia do que restava da vida da irmã.

O tempo não pára, esgota-se!

— Mikhail?

Ele percebeu que se perdera no pensamento, sendo despertado pela voz da noiva.

— Mikhail, estás bem?

— Sim, sim. Desculpa. Estava aqui a olhar pela janela…

— Não me digas que estavas a fazer olhinhos a uma latina?!

Ele riu-se cansado.

— Estou no décimo quarto andar, Lana. Quase nem vejo as pessoas.

— Estou a brincar contigo. — ouviu-a dizer, sabendo que não era inteiramente verdade. — Olha, vou jantar. Trocamos umas mensagens mais logo?

— Sim, claro.

— Dá um beijinho à minha cunhadinha. Amo-te, Mikhail!

— Eu também te amo, Lana.

Desligou e pousou o telemóvel na mesinha de apoio. Sentou-se na cadeira e continuou a olhar para o exterior, para o céu. Será que os que partem ganham uma estrelinha no céu? Ele sabia que não, sabia o que eram as estrelas e não se tratava de defuntos. Mikhail e Ekaterina vinham de uma família religiosa praticante, mas eles limitavam-se à crença que lhes fora induzida ao longo do crescimento e não praticavam nada. Ele não entrava numa igreja há muito tempo e só iria ter um casamento religioso por insistência dos pais e da noiva. Contudo, naquele momento, gostaria de ter mais fé, algo a que se agarrar. Porém, como poderia ele compreender que um ser superior supostamente justo lhe fosse levar uma pessoa adorável como a irmã?

A água calou-se. Ele voltou-se para o interior do quarto. O tempo parecia ter parado, mas era mera ilusão. O tempo não pára, esgota-se! Pensou no dia, no passeio, na felicidade da irmã. Seriam momentos como aqueles e tantos outros que teriam de fazer um esforço hercúleo para o ajudar a suportar a partida da irmã. Evitou pensar nisso, não queria ficar triste. Foda-se, haveria tempo para tristezas.

Todo o silêncio foi estilhaçado pelo som ruidoso do secador. Ekaterina estava a secar o cabelo. Mikhail levantou-se da cadeira e procurou o comando da televisão. Ligou-a. Os primeiros canais eram todos falados naquela língua roufenha. Continuou a fazer zapping até surgirem os primeiros canais de notícias falados em inglês. Deixou ficar num qualquer, sentou-se no colchão para ver a novidades e perdeu o interesse no segundo seguinte.

O som irritante do secador sumiu-se. Ekaterina saiu da casa de banho envolta num robe turco e com o cabelo em desalinho depois de ter sido violentamente soprado pelo aparelho. Ela sorriu-lhe numa expressão de “olha lá a minha figura”. Mikhail devolveu-lhe o sorriso, notando que não estava maquilhada, o que lhe dava uma beleza natural divinal.

— Queres aproveitar? — sugeriu, apontando para a divisão donde viera. — Ele assentiu. — Podemos jantar no hotel. O que achas?

— Pode ser.

— Estás bem, Mika?

A resposta foi um beijo na face da irmã.

Mikhail aceitou a sugestão de Ekaterina e foi tomar um duche rápido, lavar-se do cansaço do passeio pelas ruas da cidade. Não queria pensar na doença da irmã, mas o raio do assunto teimava em não lhe sair da mente. Teve vontade de chorar. E chorou.

Ekaterina vestira um vestido de algodão sem mangas, verde‑garrafa, com um decote circular junto do pescoço e uma bainha curta que lhe realçava as magníficas pernas acentuadas pelos sapatos de salto alto. Voltara a maquilhar-se e penteara o cabelo para um dos lados, prendendo-o com pequenos ganchos. Quando a viu, Mikhail disse:

— Vamos a alguma festa? Pareço um pelintra ao teu lado.

— Não sejas tolo, Mika.

— Estás linda.

— Tu também.

Mikhail encolheu os ombros, a imagem dele não mudava muito, t‑shirt e calças de ganga ou chinos. Sentou-se na cadeira e calçou as mesmas sapatilhas que o acompanharam ao longo do dia.

 

 

 

O restaurante não tinha muitos hóspedes. Ou era cedo ou estes preferiam sair do hotel e comer noutro lugar. O espaço era acolher, mesas quadradas diante de uma linha de sofás arredondada e complementada no número de lugares por cadeiras elegantes. No centro da sala havia mais mesas posicionadas, maiores ou menores consoante a necessidade e cercadas de cadeiras. As cores variavam entre os castanhos e os brancos. O menu era digno do chef responsável pelo espaço. O serviço de mesa era assegurado por jovens impecavelmente fardadas e a esbanjar simpatia. Uma delas recebeu-os num inglês perfeito e conduziu-os a uma das mesas com sofás, junto das janelas com vista para o Parque das Nações.

Ekaterina sentou-se no sofá, ficando de costas para a janela, dispensando a vista do entardecer. Ainda era de dia. Na véspera, àquela hora, eles ainda voam para Lisboa. Mikhail sentou-se na cadeira, em frente à irmã. Ela pediu uma salada, ele um prato composto por esparguete e camarão.

— Que achaste do nosso primeiro dia, Mika? — questionou, retirando o telemóvel da malinha.

— Quente.

— Só isso? — Ekaterina franziu o rosto com um sorriso torcido. Clicou no ecrã do aparelho e virou-o para o irmão. — Ficámos tão bem.

Mikhail viu umas das fotos de ambos.

— Só por esse sorriso, Eka, já valeu a pena ter vindo.

Duas outras funcionárias aproximaram-se da mesa. Serviram‑lhes uns aperitivos e petiscos para a espera. Ekaterina abraçou a sala com o olhar e comentou:

— Não há muita gente.

— Isto não é mau. — Mikhail pegara num pedaço de massa crocante e mergulhara-o num molho verde. — É saboroso.

— Se não gostares, peço para te trazerem açúcar.

Mikhail encaixou a piada e ambos sorriram felizes.

Comeram deliciados com as escolhas que tinham feito. O vinho sugerido pela rapariga também mereceu boa nota, um tinto do Douro. Saborearam a refeição trocando comentários acerca do dia um de férias. Não quiseram sobremesa nem café.

A jovem que mais vezes se acercara deles trouxe-lhes a conta. Ekaterina assinou para que fosse adicionada à sua conta no hotel. Muito simpática, convidou-os a subir ao bar no rooftop e desfrutar da vista e de uma bebida. Ekaterina perguntou-lhe o nome, queria deixar um elogio sobre ela, quando terminasse a estadia. Mikhail deixou uma nota de vinte euros por baixo do papel assinado.

A noite amena convidava a desfrutar da esplanada no topo do edifício. Eles sentaram-se numa mesa para dois junto ao parapeito de vidro com vista para o Oceanário e para a Marina. Aqui a clientela era maior. Um balcão atravessava a parede ao fundo, onde trabalhavam dois barmen. Dois rapazes na casa dos vinte anos cuidavam do serviço de mesas. Ekaterina brincava com a palhinha mergulhada numa água tónica com limão, enquanto Mikhail bebia pequenos goles do seu vodka.

Ekaterina atraía os olhares masculinos, mas nada mais que uma olhadela disfarçada para a loura de pernas esguias sentada na companhia de um tipo que parecia saído de um filme de espiões do tempo da antiga União Soviética. Ela era lindíssima, facilmente obteria pretendente se estivesse sozinha e quisesse. Com o irmão tomado como marido, os olhares eram fugazes e fugidios.

Curiosamente, Mikhail arrebatou a atenção de uma mulher sentada no bar e na companhia de uma amiga. A troca de olhares não deixava dúvidas do interesse dela. Mais explícito, só se colocasse umas letras em néon sobre a cabeça a piscar “quero-te”.

— Parece que ganhei uma fã. — partilhou Mikhail.

— Onde?

— Balcão. Segundo banco a contar da esquerda.

Disfarçadamente, Ekaterina voltou-se e viu a mulher exótica de tez morena, cabelo aos caracóis e vestido fresco comprido sem costas. Os seus olhares encontraram-se.

— Ups… Acho que me topou. — disse ela, voltando à posição inicial.

Mikhail voltou a olhar para a mulher. Ela piscou-lhe o olho, borrifando-se para que a loura fosse esposa dele.

— É gira. — sussurrou.

— Não precisas de falar baixinho, Mika. — lembrou-lhe com divertimento. — Não ouço ninguém a falar russo. — Piscou-lhe o olho. — Porque não tentas a sorte?

— Estás parva? Sou casado.

— Ainda não és.

— É como se fosse. — protestou pouco convicto. Os olhos da mulher não descolavam dele. — Além disso, se calhar nem fala inglês.

— Há coisas em que a língua não é importante, Mika.

— Nunca faria isso à Lana.

— Se tu não contares, eu também não conto.

— Qual é a tua, Eka?

Ekaterina riu-se.

— Estou a brincar contigo.

Mikhail retribuiu o sorriso e segurou-lhe a mão com carinho, ao mesmo tempo que olhava para a desconhecida. Foi o suficiente para a outra perceber que ali perderia o seu tempo.

Terminaram as bebidas, vendo mais pessoas a chegar. Levantaram-se e caminharam de braço dado, abandonando o recinto.

 

 

 

— Não podemos ver um canal que se perceba?

— Eu entendo o que estão a dizer. — respondeu Ekaterina sentada na cama e encostada à cabeceira com o lençol pela cintura. Vestira o pijama e a elefanta parecia ver televisão com ela. — Além disso, tu estás aí a trocar mensagens com a tua noiva.

Mikhail estava a seu lado na cama, igualmente com o lençol pela cintura, e com o telemóvel na mão. Abanou a cabeça e não insistiu. Digitou uma despedida com juras de amor para Svetlana que já estava atrasada para dormir.

Ekaterina segurava o comando da televisão e assistia a uma telenovela num dos canais generalistas portugueses. Também havia telenovelas na Rússia, mas ela nunca lhes achara grande piada. E aquela começara a ver para continuar a desfrutar da língua portuguesa.

— Não percebo o que te fascina nisso, Eka.

— É giro. Tu também irias achar engraçado, se percebesses. — Olhou para ele. — Se quiseres, posso fazer-te um resumo.

Mikhail sacudiu um pelo do peito nu e recusou:

— Deixa estar. Dispenso.

Ekaterina continuou a ver as imagens na televisão, enquanto o irmão aproveitou para navegar na Internet com o telemóvel, lendo as notícias.

Ao fim de alguns minutos, Mikhail olhou para o lado e viu que a irmã adormecera. Largou o telemóvel na mesa de cabeceira e virou-se para ela com o intuito de lhe dizer que fossem dormir. Decidiu despertá‑la com um beijo na bochecha.

Ekaterina reagiu inconsciente ao movimento dele na cama. Por instinto, rodou a cabeça no momento em que a boca dele se aproximava. Em resultado, o beijo na face resultou num beijo no cantinho da boca dela.

— Ui… Desculpa. — pediu ele, cara a cara com ela.

Ekaterina riu-se ensonada. Olhou para ele e, sem dizer nada e sem pensar, beijou-lhe os lábios. Foi um mero toque nos lábios dele.

— Desculpa, Mika! — O rosto envergonhado desviou o olhar. — Agi por impulso. Deu-me saudade dos nossos beijos de miúdos.

— Não tem mal nenhum, Eka. — retorquiu o irmão, encarando aquilo com toda a naturalidade. Riu-se divertido. — E a nossa mãe não está aqui para nos advertir.

Ela retribuiu o sorriso divertido.

— Há mais de vinte anos que não trocávamos um beijinho assim.

— Como te digo, não tem mal nenhum.

Ekaterina franziu o rosto e olhou-o com uma expressão torcida.

— Não sei se a tua noiva pensaria o mesmo.

— A minha noiva também não está aqui.

— Tu és um amor, Mika. A Lana tem muita sorte.

— Não exageres, Eka. Vamos dormir?

A irmã anuiu e ambos deslizaram na cama, estendendo-se no colchão, virados um para o outro.

Mikhail aproximou-se para trocarem um beijo na face como faziam nas despedidas ou, como na noite anterior, de “boas noites”.

— Pode ser um beijo de boa noite do tempo de criança? — pediu ela.

Mikhail sorriu e o beijo suave e rápido foi trocado nos lábios do outro.

— Dorme bem, Eka!

— Dorme bem, Mika!

Ele rodou na cama, esticou o braço para o candeeiro e mergulhou o quarto na escuridão. Cansados pelo primeiro dia de passeio em Lisboa, os irmãos adormeceram de imediato.

 

 

 

 

 

 

 

IX

 

As pessoas mostravam-se frágeis, enfraquecidas, debilitadas. Ekaterina caminhava por arruamentos que nada tinham a ver com qualquer coisa que conhecesse, nem percebeu onde estava. Cheirava a morte, a doenças. Havia fome, sim, ela sabia-o, havia muita fome.

As casas pareciam erigidas numa colina, quase todas brancas, sujas, envelhecidas e em mau-estado. Ekaterina assustou-se com um corpo caído perto de uma porta e estremeceu ao constatar que era um cadáver. Colocou a mão no rosto para se proteger do cheiro e surpreendeu-se ao olhar para a sua pele, sem a brancura caucasiana e semelhante à tonalidade dos habitantes das costas do Mediterrâneo, principalmente os do norte de África. Que estranho, não conseguia perceber o que se estava a passar. Porém, as perguntas perderam-se ao ver mais cadáveres abandonados.

Sentiu calor, mas o céu estava nublado e parecia Outono. Duas mulheres cruzaram-se com ela, as cabeças escondidas com os véus, caminhado em desespero e dizendo-lhe algo que ela não compreendeu ou não ouviu. Tinham as vestes imundas e rôtas. A curiosidade fê-la olhar para si. Um som pasmado saiu-lhe da boca, as suas vestes eram idênticas, uma longa túnica castanha em tecido rude, um véu a esconder os cabelos… E os cabelos? Tão negros quanto os da cunhada. Que estava a acontecer?

Tropeçou e quase caiu. Magoou os dedos nas sandálias com buracos nas solas. Nem reconheceu os seus pés, aqueles não eram os seus pés, não podiam ser, aquelas feridas não eram suas, não doíam…

Subitamente, sem saber como, estava na encosta daquela cidade. Atrás de si, o castelo imponente no topo, muitos soldados nas ameias. Não era especialista em reconhecimento de povos pelos trajes, mas teve a certeza de que eram mouros, a mesma certeza que lhe dizia que ela também o era. Sentiu medo, muito medo. Foi nesse instante que se lembrou que o irmão não estava consigo. Onde estaria o irmão? Gritou:

— Mikhail! Mikhail!

Contudo, do seu grito não resultou qualquer som.

Novamente, a realidade à sua volta mudou. Continuava naquela cidade moura, agora noutro ponto, uma espécie de quintal por onde se avistava a gigantesca cerca moura que defendia a cidade. Estremeceu com a quantidade de soldados que se encontravam para lá da muralha.

— Cristãos… — deu por si a dizer, sem perceber como chegara a essa conclusão.

— Layla! — chamava uma voz desconhecida. — Layla! Layla!

Ekaterina olhou em redor. Viu uma mulher idosa, andrajosa, a acenar na sua direcção. Tornou a observar a realidade que a rodeava, não estava ali mais ninguém

— Não me chamo Layla! — gritou à outra, mas a frase só existiu na sua cabeça.

A senhora continuava a acenar-lhe.

— Layla! Layla! Foge. Eles vêm aí.

— Quem?

A desconhecida não perdeu tempo e desapareceu numa esquina.

Ekaterina tornou a olhar para perceber tudo o que a vista alcançava. Mais soldados corriam no topo da alta cerca de defesa. Centenas e centenas de inimigos perfilavam no campo que separava a muralha do rio largo onde vários barcos ancorados aguardavam com as velas recolhidas.

A cidade estava cercada há quase quatro meses, sitiada por cristãos, por cruzados a caminho de Jerusalém que se uniram às forças cristãs locais para a expulsar a ela e à sua gente. Ekaterina não fazia ideia de como sabia aquilo, mas sabia.

Aquela não era a sua gente, ela era russa nascida e criada em São Petersburgo. Nada fazia sentido, mas pouco pôde pensar sobre isso, estremecendo com o som horrível semelhante a um trovão no céu que se prolongara por um tempo medonhamente longo. Ouviu os vivas no exterior, viu as movimentações urgentes na muralha. A nascente, uma nuvem de pó elevava-se no ar. Parte da cerca ruíra. Ekaterina não via a brecha, nem fazia ideia de como o sabia.

Os mouros tentaram rechaçar os invasores sitiantes, mas estavam enfraquecidos pelas doenças e pela fome. Essa certeza levou-a a olhar para o seu braço e assustou-se ao ver os contornos dos ossos num corpo magro a definhar.

Começaram a chover setas. Uma enorme torre de madeira construída pelos invasores aproximou-se a sul, trazendo soldados para mais um ponto de ataque.

A realidade ficou turva. Repentinamente, o dia dera lugar à noite e Ekaterina estava defronte de uma fogueira na companhia de outras mulheres muçulmanas. Não sabia falar a língua delas, mas inexplicavelmente, compreendia tudo o que diziam.

As mulheres estavam apavoradas. Comentavam que os homens heroicos da cidade defendiam como podiam os últimos redutos. Apesar da brecha e dos sucessivos ataques, a noite chegara sem que se rendessem. Contagiada pelo medo palpável, Ekaterina ficou em pânico. Onde estava Mikhail? Que lhe acontecera? Porque não a vinha proteger como sempre fizera?

Novo salto de realidade. Era de novo dia. Gritos e gritos mergulhavam aquele importante posto mercantil mouro no caos. Havia mortos por todo o lado. Ela sabia que os cristãos tinham entrado na cidade, estava condenada.

Queria sair daquele filme, aquilo não fazia sentido nenhum. Nem sabia como ali fora parar. E aquela não era ela. Que raio estava a acontecer?

O medo assumiu proporções dantescas. Perdida nas ruas da cidade, no aglomerado de casas edificado na colina, viu soldados inimigos a correr no fundo da viela, matavam indiscriminadamente, pilhavam, violavam…

As lágrimas correram-lhe pelas faces. Desesperada, fugiu para cima, talvez no castelo encontrasse auxílio, talvez lá fosse possível sobreviver aos invasores.

Cheirava a fumo, cheirava a medo, cheirava a moléstia, cheirava a morte. Havia fogos nalguns pontos. Pó das movimentações militares, cadáveres por todo o lado. Ela ficou confusa, perdida na sua própria cidade. Mas, aquela não era a sua cidade. Viu soldados cristãos a subir pelas ruas estreitas, acotovelando-se nas pilhagens, trespassando mouros indefensos, arrastando raparigas para uma humilhação colectiva. O Diabo andava à solta.

Ekaterina continuou a correr, a subir a colina, desesperada por chegar ao castelo. Nas ruas adjacentes, linhas que cruzavam as casas sem qualquer alinhamento planeado, viu mais gente a fugir e mais soldados a perseguir. A confusão era tanta que virou na rua errada, não encontrou o caminho para o castelo e…

Ekaterina deu por si num pequeno largo com uma fonte. Soldados cristãos apareceram numa rua, e noutra, e noutra, e noutra… Sozinha, viu‑se cercada por mais de vinte soldados, esfaimados, violentos, carregados de ódio. Olharam-na como o leão olha para a gazela. Rezou a Alá por uma morte rápida. Eles riam, percebendo que rezava.

— Quem quer ser o primeiro? — gritou um deles, um tipo com ar nojento que parecia possuir um posto de liderança.

No meio do pânico e desespero, Ekaterina reconheceu a língua… Ou melhor, teve noção que sabia falar aquele idioma, apesar das grandes diferenças de vocabulário para o que ela viera a aprender.

— Todos terão a sua oportunidade. — gritou outro. — Mas, não me importo de vos abrir o caminho.

Outro militar deu um passo em frente com os olhos esfomeados no corpo da moura.

— Bem sabemos como abres caminho com estas megeras. Ficas para o fim. — Dirigiu-se ao grupo mais próximo dela. — Agarrem-na!

Nesse mesmo momento, uma voz grossa ecoou entre eles, num tom autoritário.

— Quietos!

Todos olharam para trás e viram um militar a cavalo.

Ekaterina viu um homem ensanguentado com sangue que não era seu. Os trajes rasgados e as amolgadelas na armadura revelaram como estivera ocupado na batalha. Tinha o cabelo negro cheio de caracóis e uma barba espessa. O rosto fechado cravou os olhos nela. Não era preciso perceber de patentes para constatar que ele tinha uma posição superior aos restantes. Os soldados abriram caminho para que passasse montado num cavalo branco cheio de manchas de lama e sangue.

O cavaleiro era um nobre cristão local, não um do muitos nobres cruzados estrangeiros que se haviam associado à invasão com a promessa da pilhagem. Parou o animal a dois passos de Ekaterina que tremia como se estivesse nua no Polo Norte. Ele saltou do cavalo e caminhou até ela, sério, altivo, imponente.

O medo consumia o corpo fraco de Ekaterina. Mesmo assim, não desviou o olhar do homem. Ele parou a um passo dela, olhando-a, avaliando-a. Teve uma certeza dilacerante, ele seria o primeiro, depois viriam todos os outros. Queria morrer.

— Percebes o que digo? — Ela assentiu com tremores e perdendo a coragem de o encarar. — Não tenhas medo, não te vão fazer mal.

A expressão no rosto dela mostrou-lhe que não acreditava, apesar de só conseguir olhar-lhe para o peito, pois ele era muito mais alto.

O nobre voltou-se para os militares.

— Vão às vossas vidas! Esta é minha.

Muitos acataram a ordem sem hesitação, havia muito para roubar, pilhar e mulheres para violar. O gajo que ficasse com aquele trapo. Porém, os três que haviam falado antes da sua chegada, não se mexeram. O que dera a ordem para a agarrar, esboçou um protesto:

— Chegámos primeiro.

O nobre colocou a mão no punho da espada e respondeu:

— E podeis ir primeiro também, para o Inferno se vos aprouver.

Ekaterina viu puro ódio nos olhos do outro. Contudo, o parceiro a seu lado tentou chegar a um acordo.

— Não queremos problemas, senhor. Talvez nos possa deixar os restos, quando acabar?

Ele deu um passo para eles, puxando a espada dois centímetros para fora da bainha.

— Calma, calma, senhor. Como disse, não queremos problemas.

Os três murmuraram algumas maldições, mas acabaram por se afastar.

No meio de todo o caos, de repente, naquela pequena praceta com uma fonte, ficaram unicamente eles os dois, Ekaterina e o nobre.

— Não tenhas medo! — descansou-a num tom calmo.

Ela não fez fé nenhuma nele e continuava a tremer.

— Olha para mim! — Ekaterina teve medo de o encarar. Ele ia fazer-lhe mal. — Olha para mim, por favor.

O tom começou a apaziguá-la e ela ganhou coragem para ver o seu rosto. Estava tão perto que os olhos lhe arrebataram toda a atenção.

— Diz-me o que vês. — ouviu-o dizer, apesar de ele não ter mexido a boca.

Ekaterina observou os olhos, havia algo neles, algo familiar.

— Mika…

 

 

 

Acordou sobressaltada. Confusa, abriu os olhos para o escuro, não via nada, somente uma luz vermelha na parede e outra verde perto do tecto que piscava de tempos a tempos. Aos poucos, colocou as ideias no lugar, tudo não passara de um sonho. Ou talvez tivesse sido mais um pesadelo. Contudo, aquela sensação de vulnerabilidade e uma realidade sem o irmão, deixara-a perturbada. Sabia que jamais conseguiria viver se o perdesse. Porém, a cruel realidade atingiu-a como uma pedra, seria ele a perdê-la a ela. Quase chorou por pensar no sofrimento que o irmão iria atravessar.

Os seus pensamentos recaíram no que se lembrava do sonho, fora tão intenso e estava tudo tão fresco que conseguiu rever as cenas com alguma clareza. A câmara escura em que se tornava o quarto à noite também ajudava a concentrar-se unicamente no que sonhara.

Que lugar seria aquele? Teria sido algum filme que vira? Teria a sua imaginação decidido, vá lá saber-se porquê, colocá-la no enredo desse filme? O que mais a perturbava era a sensação de realidade, o que era manifestamente absurdo. Subitamente, o cérebro apresentou-lhe uma memória que a sobressaltou, algo que com todas as agruras dos últimos tempos se arquivara num cantinho da sua cabeça, até porque nem era relevante, não fosse o sonho que acabara de ter. Recordou a conversa com Tiago, quando estava grávida e faziam planos animados para o futuro. Ele dissera que se fosse menino, gostava que se chamasse Ivan que era o equivalente ao nome do seu avô João. Ela concordara e sugeriu para menina o nome… Layla.

O cérebro pregava-lhe partidas, não tinha dúvidas. Metera-a num filme dos tempos das Cruzadas a ser uma moura com o nome que gostaria que a filha que não chegou a nascer tivesse. No entanto, voltou a pensar no lugar que sonhara, a tal cidade moura. A lembrança provocava-lhe uma certa saudade, como se inúmeras memórias felizes se escondessem naquele lugar. Mais um absurdo, todo o sonho tinha sido violento. E ainda por cima, o cérebro arrastara o irmão para aquele surrealismo. Mas, essa parte ela compreendia, sabia o porquê do seu subconsciente trazer o irmão para o sonho, ele era o seu cavaleiro salvador que a protegia de tudo, o seu porto de abrigo. Se o argumento do sonho englobava um herói que a salvava no fim, esse herói tinha de ser Mikhail. Sorriu feliz por a vida lhe ter dado aquele irmão.

Olhou para o corpo tranquilo que dormia a seu lado. Não via mais que um vulto. Teve vontade de o abraçar, protegendo-o das coisas más, como fazia quando ele era um menino franzino. E agora, a coisa má era o “bicho” que crescia nela e que a roubaria do irmão. Colocou a mão nas costas dele, ao de leve, só para lhe sentir a pele, não queria acordá-lo. Ele nem sentiu o toque e ressonou baixinho.

Ekaterina rodou para o lado oposto e pressionou o ecrã do telemóvel. Ainda era cedo. Bocejou e deixou o sono voltar.

 

 

 

— Que sonho, Eka. Cá para mim é de veres aquelas novelas que estavas a ver ontem à noite.

Ekaterina percebeu o tom brincalhão do irmão. Estavam sentados a tomar o pequeno-almoço no hotel. Ela contara-lhe o sonho pela manhã, quando acordaram, de forma resumida.

 

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