NUNCA NEVA NO MEU ANIVERSÁRIO

I

Não fosse o momento e o ambiente envolvente poderia ser apreciado com a devida honra. O céu estava azul, o sol brilhava e o mar ao longe parecia calmo. Na minha frente, imponente, o cume da ilha do Pico elevava-se sobre as nuvens, como que espreitando do lado de lá do canal, por cima da mancha urbana da Horta. A brisa fresca, ténue e agradável, soprava-me o rosto. Como seria bom desfrutar daquele cenário noutra circunstância.

No entanto, a hora era solene e triste. Quase que poderia dizer que o silêncio era prazenteiro, não fosse o facto de eu estar num cemitério a assistir a um funeral.

Uma dúzia de pessoas rodeavam o caixão prestes a descer até à sua última morada. Rostos riscados de lágrimas, alguns escondendo olhos inundados atrás de lentes escuras, outros impávidos num lamento interno olhando o buraco sem o ver e escutando as palavras ditas pelo padre local.

Eu ali estava, observando e partilhando dos sentimentos que se afloravam a cada palavra, a cada sílaba, a cada letra proferida. Se a morte é sinónimo de paz, quem nos deixava estava a alcançá-la e essa convicção atenuava a dor que perfurava a alma.

O cemitério descaía como se descesse na direcção do mar, deixando as campas viradas para o majestoso Pico. O orador colocara-se numa posição alta, encabeçando o círculo que rodeava a urna, tendo perto de si os familiares. Eu estava um pouco mais ao lado, descaído para a esquerda, tendo o padre quase à minha frente. As suas palavras cerimoniosas elogiavam quem nos deixara e procuravam ânimo na fé de um destino celestial de descanso eterno. Talvez nem todos os presentes fossem religiosos, mas em momentos de dor, as pessoas agarram-se às crenças como medicamento.

A minha atenção estava dispersa em memórias que se misturavam com o som das palavras afagadas pela música dos pássaros e do mar lá em baixo.

Olhei para o rosto da criança petrificada junto ao padre, a qual parecia desligada da realidade com o olhar fixo no caixão que guardava o seu progenitor. Não chorava, não gritava… Lamentava com silêncio a dolorosa perda. A menina tinha onze anos e o seu rosto era assustadoramente idêntico ao da sua mãe com a sua idade que eu conhecera vinte e cinco anos antes.

Quando tinha dez, onze anos, Sónia era o original da cópia quase perfeita que via naquela menina triste. Na altura, eu tinha os meus dez anos e confrontava-me com o primeiro dia de aulas no 5º ano numa escola da grande cidade, vindo da escola primária da aldeia. Para mim era um mundo novo e temível, onde não conhecia ninguém. Tudo era muito maior, o edifício, o recreio, os alunos… Ao entrar na sala de aula, a professora disse-nos que nos espalhássemos pelos lugares por ordem numérica da turma. Durante alguns segundos, andámos perdidos mas lá nos fomos arrumando. A sala tinha mesas de dois lugares e eu fiquei numa das últimas, graças ao facto de me chamar Ricardo e a ordem numérica respeitar a ordem alfabética do nome próprio de cada um.

Eu iria partilhar a mesa com uma colega. Quando temos dez anos sentimo-nos mais entusiasmados em falar com os rapazes do que com as raparigas. Aliás, até àquele momento, nunca tivera uma amiga, apenas os meus amigos da aldeia com quem jogava à bola, ao berlinde ou à apanhada, entre muitas outras brincadeiras.

Antes de me sentar, perguntei-lhe timidamente qual era o seu número. Ela respondeu sem me dar grande atenção e eu confirmei que era o seguinte ao meu e que o lugar a seu lado era para mim.

Tirando uns cinco ou seis que já se conheciam, todas as crianças estavam em silêncio, tímidas a ouvir a primeira chamada do ano lectivo. Como não sentia a mínima cumplicidade com meninas, lamentei ter uma como colega de mesa. Para ser sincero, ela intimidava-me, tal como todas as raparigas bonitas como ela. Nem tive coragem de lhe perguntar o nome, o qual só vim a saber no momento em que a professora a chamou.

Sónia era uma menina de rosto triste, pois o destino fizera os pais deixarem a sua amada ilha do Faial para trabalhar no continente, o que a afastou da restante família e amigos. As suas feições eram rosadas, os olhos rasgados onde sobressaia uma tonalidade castanha, um nariz singelo e uma boca pequena silenciosa. Tinha um longo cabelo preto liso com uma fita branca em volta da cabeça que lhe amparava a franja. Vestia calças de ganga com uma camisa amarela ponteada de pequenas rosas desenhadas.

Feitas as apresentações, a professora indicou como primeiro trabalho para aquela aula que cada aluno fizesse uma composição acerca do seu colega do lado, ou seja, tínhamos de entrevistar o nosso desconhecido sócio de mesa e fazer um texto sobre isso.

Escusado será dizer que éramos tão tímidos que parecia que existia um muro de gelo entre nós. Por momentos, ficámos paralisados e só nos mexemos para pegar no caderno e na caneta. Sem saber bem como, dei por mim a virar-me para ela e começar a falar, dizendo-lhe o meu nome, idade e a contar-lhe donde vinha e como me sentia com aquela mudança. Para meu espanto, ela olhava-me com muita atenção e eu falava completamente hipnotizado pelo seu olhar penetrante de menina. Senti-me nas nuvens quando lhe provoquei o primeiro sorriso com os meus relatos. O à vontade súbito com que falava deixara-a também mais relaxada e também ela começou a falar de si. Acabámos por concluir que tínhamos histórias parecidas e o facto de sermos duas crianças num ambiente novo e desconhecido aproximou-nos muito e deu origem à cumplicidade e amizade que passámos a partilhar.

Apesar do aspecto cândido de menina bem comportada que parecia só se interessar por brincar com bonecas, ela era uma maria-rapaz que adorava jogar à bola, correr, rebolar na terra… Mas, o nosso maior divertimento era brincar à “Acção em Miami”. A geração nascida nos anos 70 lembra-se certamente dos míticos Sonny Crockett e Ricardo Tubbs, protagonistas da série Miami Vice, ou em português Acção em Miami. Tanto eu como ela adorávamos a série e gostávamos de brincar ao faz-de-conta encarnando os dois detectives. Pelas semelhanças entre os nomes, ela fazia de Crockett e eu de Tubbs. De tal maneira aquilo nos marcou que para sempre ficámos um para o outro como Tubbs e Crockett.

Houve uma altura, ainda antes de entrarmos na adolescência, em que Sónia se sentira influenciada por um filme de miúdos em que um rapaz e uma rapariga, mais ou menos da nossa idade, davam o seu primeiro beijo. Na época, o assunto era completamente desinteressante para mim, mas ela não se calava com as cenas do filme. Confesso que mesmo sendo uns meses mais velha que eu, Sónia amadureceu mais rapidamente e estava a sentir a curiosidade do primeiro beijo. E um dia, a meio de uma brincadeira, ela surpreendeu-me com um beijo nos meus lábios. Bom, foi mais um choque de bocas. Eu tive a reacção mais estúpida, saindo-me um “que nojo”. Ela ficou meio envergonhada sem saber o que dizer. Acabou por perguntar se eu não gostara. Eu menti que não, agradado com o sabor que ela me deixara. Na verdade, eu habituara-me a que Sónia fosse um amigo como os que tinha na aldeia, como se fosse um rapaz, dar beijos na boca era coisas de adultos, eu não sabia como agir perante aquele tipo relação e a minha timidez condicionava-me. Porém, a menina Sónia gostara, não o disse, mas gostara. Percebi isso quando disse que esse poderia ser o nosso cumprimento secreto. A minha resposta foi: “já viste o Crockett e o Tubbs aos beijos na boca?”. O assunto morreu ali. Contudo, o episódio não afectou a nossa amizade. Sorri-lhe, agarrei-lhe na mão e voltámos às brincadeiras usuais.

Longe estava eu de saber que abrira mão de algo que iria desejar ardentemente algum tempo depois.

Os anos foram passando por nós e a amizade era cada vez mais sólida. Adorávamos estar um com o outro e mesmo tendo outros amigos e amigas, nada se comparava à nossa relação.

A entrada na adolescência trouxe uma Sónia cada vez mais mulher, a ganhar formas e muito preocupada em ser feminina. Já no meu caso, trouxe borbulhas, mudança de voz e as hormonas ao rubro. Já não conseguia olhar para a Crockett como o meu amigo. Sónia era uma rapariga linda, a minha amiga, confidente, a minha metade e eu estava apaixonado por ela. No entanto, algumas coisas mudaram nela, tal como a reserva em certas confidências, preservando uma área invisível à sua volta onde eu não podia entrar e esforçava-se por parecer adulta. Se com aquela idade não tinha a mínima noção do que era o amor, estava certo que era isso que sentia por ela. Só que o medo de perder a minha grande amiga nunca foi vencido pela paixão e atracção que ela provocava em mim. Apenas uma vez tive a intenção de me declarar, começando a falar no episódio do beijo. Ela deu uma gargalhada e disse que tinha sido das coisas mais ridículas da sua vida. O meu coração ficou em cacos.

O nosso percurso escolar foi paralelo até ao 12º ano, colegas de escola, de turma e na maior parte dos casos de mesa também. Quase todas as pessoas pensavam que namorávamos, mas isso nunca aconteceu entre nós. E em determinada altura, eu tive a minha primeira namorada, o que deitou por terra essa ideia. Para meu mal… ou bem, os meus namoricos nunca duravam muito. Eu não alterava a proximidade que tinha com Sónia e isso deixava as minhas namoradas ciumentas, o que as levava a ultimatos onde ficavam sempre a perder, pois eu jamais preteria a minha Crockett. Já Sónia afastava qualquer ideia de namoros, dizendo que isso não a interessava e concentrava-se exclusivamente nos estudos e em algumas amigas, para além de mim. E na verdade, ela era uma aluna excepcional, por quem dava muito jeito copiar nos testes.

Quando chegou a altura da Universidade, Sónia deu continuidade aos seus planos para o futuro, unindo dois desejos, o gosto pela Biologia e o regresso aos Açores. Por isso, candidatou-se à Universidade do seu arquipélago natal. Sem ter um objectivo concreto, acabei por me candidatar ao mesmo curso. Sónia sabia que a minha escolha tinha como único fim acompanhá-la e por isso tentou convencer-me a escolher algo que fosse bom para mim, repetindo várias vezes que a distância jamais seria uma barreira à nossa amizade. Porém, bom para mim era estar perto dela, fosse ali ou no fim do mundo.

No dia em que saíram os resultados das colocações, o meu mundo ruiu. Sónia entrara na sua primeira opção e eu fora atirado para a minha penúltima, Biologia na Universidade do Algarve. E quando ela partiu para São Miguel, para a sua nova etapa escolar, as nossas vidas tomaram caminhos distantes.

Ambos sofremos bastante com a separação. Desde miúdos que não havia um dia que não nos víssemos. Mesmo assim, esforçávamo-nos por estar em contacto todos os dias. No início, ligávamos um ao outro todas as noites e trocávamos emails. Porém, o ritmo esmoreceu quando ela começou a namorar com um colega de curso.

Foi durante um telefonema que Sónia me deu a novidade com um tom de felicidade na voz. Senti-a tão feliz quanto era a mágoa que me ia na alma. Eu tinha namorada no Algarve, e ela sabia, pois brincava sempre comigo dizendo que estava a durar porque ela estava longe. Só que na realidade, eu continuava a trocar de namorada com frequência porque procurava sempre em todas a cumplicidade Ricardo “Tubbs” e Sónia “Crockett”. Era uma omissão que a deixava a pensar que a minha namorada era sempre a mesma. No entanto, saber que Sónia tinha um namorado era mais sério, pois era o seu primeiro relacionamento e, se ela deixara cair as defesas e se entregara a um namoro, significava que era algo muito profundo e que poderia muito bem um dia resultar em casamento. E por mais escondidas que eu mantivesse as minhas esperanças com Sónia, elas andavam sempre por ali à flor da pele. Só que aquela notícia abafava-as em definitivo.

Infelizmente, eu não me enganara. O namoro era mesmo sério e resultou em casamento após a licenciatura, quando ambos conseguiram bons empregos. A minha licenciatura demorou mais algum tempo, já que eu não levava a questão com tanta responsabilidade quanto devia.

Durante o tempo universitário, nem ela regressou ao continente, nem eu a visitei. Ela costumava mandar-me emails com fotos onde se via explicitamente o seu ar de felicidade. Quando me telefonava, partilhava comigo relatos dos bons momentos com o namorado. Sempre me mostrei feliz por ela, mesmo com o que sentia, e a sua felicidade atenuava o lamento de não ser eu a sua causa.

Quando Sónia casou, eu ainda estava a terminar o curso. Fui convidado para o casamento, mas não fui com a desculpa de que o orçamento de estudante deslocado não dava para pagar uma viagem até ao Faial. Na realidade, não tinha dinheiro para o fazer, mas mesmo que tivesse não tinha vontade de lá ir. Contudo, Sónia mandou-me tantas fotos da cerimónia que vi tudo como se lá tivesse estado.

Licenciei-me um ano depois e tive a oportunidade de fazer um estágio em Londres. Decepcionado que estava com a sucessão de namoros falhados, dediquei-me totalmente ao trabalho. Com o tempo construí uma excelente carreira profissional na área da investigação, trabalhando durante uns anos em Londres, Praga, Seattle, Sidney e Joanesburgo até regressar a Portugal para a direcção de uma grande empresa em Lisboa.

Se era um profissional de sucesso, no campo afectivo era uma miséria. Nesses anos continuara a ter casos pontuais com várias mulheres que se cruzaram na minha vida, tantos que lhes perdera a conta e ficara sempre sozinho. Quando pensava nisso, sentia-me como a música do outro que dizia “já tive mulheres de todas raças, de todas as cores”.

Felizmente, Sónia alcançara os dois, sucesso profissional e pessoal. Tinha um casamento feliz e um emprego estável bastante rentável. E não muito tempo passado, fora mãe de uma menina. Mesmo comigo a trabalhar pelos quatro cantos do mundo, mantivemos o contacto, não com a regularidade de antigamente, mas o suficiente para manter a forte amizade que sempre nos unira. E longe, eu acompanhava a evolução da sua vida através das fotos que me enviava por correio electrónico.

Ao longo dos anos habituara-me ao tom feliz dos relatos dela. O tempo e a distância deixaram-me a convicção de que todos os sentimentos que eu nutria por ela se haviam esfumado, excepto a amizade. Até a cumplicidade já não era a mesma. Decorrera mais de década e meia desde a última vez que estivera com ela e eu acreditava que toda a partilha que tivéramos era agora algo dela com o marido. Eu fora substituído e era normal que assim fosse, a sua metade deveria ser ele e não eu. A minha Crockett era uma figura distante no tempo, onde este Tubbs já não se encaixava no presente.

No entanto, uma noite, quando atendi o telefone, senti-lhe imediatamente na voz uma mágoa profunda. Nos meses que antecederam aquele telefonema, já reparara que os seus relatos da vida pessoal se haviam reduzido, falando apenas na filha e raramente no marido. Até as fotos por email acabaram porque supostamente a máquina fotográfica avariara. Conhecia-a demasiado para não perceber que algo não ia bem, só que sempre que lhe perguntava, obtinha a mesma resposta: “sim, sim, está tudo bem”. Contudo, naquele telefonema, a sua voz tropeçava nas palavras e perante a mesma pergunta, ela surpreendeu-me com a informação de que se iria divorciar. Foi um choque e uma sensação de impotência quando ouvi o seu choro no outro lado da linha. Sónia não quis avançar pormenores, limitando-se a balbuciar que se sentia perdida e sozinha. “Preciso tanto dos meus amigos” dizia ela, “preciso tanto de ti”. Não sabia que palavras usar para atenuar a sua dor e acabei por dizer que eu estava ali para o que ela precisasse. Ela retorquiu que não precisava de mim ali, mas sim lá perto dela.

Desde que regressara aos Açores, Sónia convidara-me inúmeras vezes a visitá-la. Nas primeiras, a recusa devia-se à falta de dinheiro, mas depois desculpava-me com o trabalho que não me permitia ter uns dias de descanso. Claro que o que eu não queria era ser espectador da sua vida matrimonial. Ficava feliz por ela estar feliz, só que evitava ser parte do filme. Por isso, aquele convite desesperado sabia que iria ter uma resposta negativa. Só que as condições eram diferentes, ela precisava de mim e isso era mais que suficiente para largar tudo e ir ao seu encontro. No meio de tanta tristeza, as suas lágrimas deram tréguas ao ouvir-me dizer que iria tirar uns dias e iria visitá-la ao Faial.

Demorei uns três dias a conseguir organizar a minha vida profissional para ter férias. Ao longo desse tempo, a ansiedade foi crescendo e voltei a sentir-me um miúdo adolescente com o nervoso miudinho de quem vai ao encontro do amor da sua vida.

 

 

 

As viagens de avião eram uma rotina para mim. Desde o primeiro voo que garantia a mim mesmo que voar era seguro, mas isso não evitava que receasse fazê-lo. E confesso que as viagens sobre o mar me assustavam. O dia estava bonito e a visibilidade para quem ia à janela era muito boa, só mesmo perto da chegada houve um aumento de nebulosidade. O cume do Pico deu-me as boas vindas, surgindo magnânimo acima do manto de nuvens. Alguns instantes depois, o avião começou a sua trajectória descendente rumo ao Aeroporto do Faial. Cerca de duas horas e meia após levantar de Lisboa, o avião aterrava tranquilamente na pista da ilha.

O Sol estava tímido deixando-se tapar por um leve aglomerado de nuvens. Ao sair do avião, senti a brisa suave e o cheiro a maresia. O ambiente transmitia a sensação de paz, de calma, de sossego… Só mesmo o pessoal do aeroporto andava stressado a encaminhar os passageiros para o terminal.

Respirei profundamente aquele ar puro que parecia limpar-me os pulmões de toda a poluição acumulada na grande cidade. Estar de férias fizera-me abandonar o estilo formal de fato e gravata de todos os dias para umas informais calças de ganga e t-shirt.

Ao caminhar pela pista, observei o edifício do terminal. Algures lá dentro, Sónia aguardava a minha chegada. O meu coração estava aos pulos, desejoso do reencontro. Dirigi-me à zona das bagagens e aguardei impaciente pela minha mala. Assim que ela surgiu no tapete rolante, agarrei-a e caminhei para fora da zona reservada aos recém-chegados.

Tudo era novidade ali. Segui as indicações de saída e, como não vi Sónia no espaço público do edifício, aguardei no exterior junto à saída. O aeroporto ficava mesmo junto ao mar e a um nível inferior à estrada que lhe dava acesso. Observava toda a beleza paisagística envolvente, quando ouvi uma voz:

─ Tubbs!

Olhei para trás de mim. O meu coração batia a mil à hora e toda a ansiedade dera lugar a uma súbita timidez, aquela que sempre me afectara junto de Sónia.

─ Crockett. ─ suspirei.

Sónia não estava muito diferente das últimas fotos que vira de si. Apesar de ser uma opinião suspeita, não posso deixar de dizer que estava linda e a idade trouxera-lhe uma maturidade donde brotava uma elegância muito sensual. Vinha vestida com uma t-shirt branca larga que destacava um golfinho azul, calções pelos joelhos e sapatilhas. O vento fazia-lhe esvoaçar o longo cabelo e o seu rosto mantinha todos os traços gravados na minha memória. Abriu o sorriso quando olhei para ela e puxou os óculos escuros para cima de forma a amparar a franja.

Larguei a mala no chão e aproximei-me dela. Abracei-a e senti o seu abraço tão forte como o meu. Não tenho palavras para descrever o que senti ao absorver o seu cheiro, o seu toque… Foram mais de quinze anos longe dela. Abraçá-la foi como envolver uma almofada macia junto ao corpo adaptando-se a cada pedaço da pele. Ela cheirava tão bem que apetecia respirar cada poro. Por momentos não dissemos nada, ficando apenas agarrados naquele abraço muito forte com medo de que se largássemos, nos voltássemos a afastar para muito longe. O seu rosto mantinha-se colado ao meu, os seus braços à volta do meu pescoço. Eu tinha os meus à volta do seu tronco, apertando-a bem contra mim.

─ Que saudades. ─ disse ela por fim.

─ Mais que aquelas que o meu coração aguenta. ─ confessei.

─ Achas que já nos podemos largar? ─ interrogou num tom brincalhão.

─ Só mais um bocadinho. ─ respondi, obtendo um risinho delicioso da sua parte.

Em simultâneo, afrouxámos o abraço e trocámos dois beijos na face. Ela afastou-se e eu segurei de novo a mala, reparando que os seus olhos estavam ligeiramente inchados. Muitas lágrimas deveriam ter derramado nos últimos tempos.

O trajecto até sua casa foi feito de carro, um pequeno Peugeot 107 branco, pela estrada que contornava a ilha. Apreciei a vista, o mar infinito que nos acompanhava paralelo ao percurso. Em frente, o topo do Pico começava a aparecer no horizonte. Curva para a esquerda, curva para a direita, recta… Alguns quilómetros percorridos em pouco mais de quinze minutos até chegar à capital da ilha.

Sónia vivia numa casa térrea, num pequeno bairro de casas semelhantes, à entrada da cidade da Horta. A moradia parecia pequena, mas lá dentro era bastante espaçosa. Tinha uma grande sala que partilhava o espaço com a cozinha, um quarto e uma casa de banho logo à entrada e ao fundo um outro quarto. Uma porta em vidro fazia a ligação para um pequeno pátio lateral.

Apesar do semblante abatido resultante dos acontecimentos dos últimos tempos, Sónia não escondia o sorriso ao fazer de guia pela sua casa, mostrando-me todos os cantos e indicando-me o quarto onde eu iria ficar. Com a decisão da separação, o marido já não estava a viver lá, havia mais de três semanas, e naquela altura até estava em Ponta Delgada por causa do seu trabalho. Eu poderia dormir no quarto da filha e a pequena Clarinha dormiria com a mãe. Contudo, nem mesmo a filha estava em casa, pois com as férias o seu gosto era passar o dia em casa dos avós que viviam perto de Varadouro e onde poderia desfrutar das piscinas naturais e da companhia dos amiguinhos.

O Varadouro é um conjunto de formações basálticas que se transformaram em piscinas naturais, muito procuradas por endémicos e turistas, o que a tornou numa das áreas balneares de eleição da ilha. Nessa tarde, Sónia levou-me até lá quando foi ao encontro da filha. O carro ficou no parque, junto aos balneários, e caminhámos por entre as rochas até ao mar. A vista da baía era deslumbrante com o imenso mar a ondular, renovando a água das piscinas, e o morro de Castelo Branco a sul, uma formação enorme com um penhasco assustador. Logo junto à primeira piscina, uma outra pequena estava repleta de crianças. Sónia chamou a filha e eu reconheci de imediato a pequena Clara. A criança também me reconheceu a mim, das muitas fotos que eu enviara à mãe, ao longo dos anos. Fez um intervalo nas brincadeiras e veio ao encontro da mãe. As semelhanças entre Clarinha e Sónia com a sua idade eram quase surreais. A pequenina, meio tímida, aproximou-se de mim para me dar um beijo. Olhar para ela era como recuar vinte e cinco anos. Como qualquer criança, não perdeu muito tempo connosco e regressou para junto dos amigos.

─ Como tem ela reagido? ─ indaguei, olhando para o rosto da mãe a observar a filha.

Sónia encaminhou-nos para uma zona onde nos pudemos sentar e respondeu:

─ Mais ou menos… De início ficou em choque, principalmente quando o pai saiu de casa. Tentei explicar-lhe, mas… Tu imaginas, não é? Explicar a uma criança… Bolas, nem eu consigo compreender…

Desde que ela me contara da separação, nós nunca mais faláramos sobre isso, nem ela ainda contara as causas. Por isso, tentando usar as melhores palavras que não a melindrassem, questionei os seus motivos.

Ela olhou para mim e abanou a cabeça. Antes que proferisse qualquer palavra, reparei que os seus olhos começaram a ficar húmidos. Pedi-lhe desculpa e constatei que era melhor não falar disso.

─ Não. ─ recusou, limpando as lágrimas com as costas da mão. ─ Eu conto-te. Preciso de falar. Ainda não falei sobre isso com ninguém.

Eu coloquei um braço sobre os seus ombros para a reconfortar e com um sorriso, lembrei:

─ Sabes que podes contar comigo… Crockett.

─ Eu sei. Tu és um querido. És um amigo incrível, és a melhor coisa da minha vida a seguir à Clarinha.

Apertei-a ligeiramente contra mim e dei-lhe um beijo na testa. Ela era não só a coisa mais importante da minha vida como era o meu grande amor. Mas, claro que isso eu não disse.

─ Sabes? Acho que um homem quando está casado com uma mulher de trinta e seis anos acaba por preferir ter duas de dezoito.

─ Que estupidez. ─ barafustei indignado.

─ A sério, Ricardo.

─ Não me digas que ele te trocou por duas de dezoito…

─ Não foi assim linear, mas trocou-me por uma mais nova.

Uma lágrima escorreu pelo seu rosto. Eu antecipei-me e limpei-a, acariciando a sua pele molhada com o dedo indicador. Passei a mão pelo seu cabelo e constatei:

─ Então divorciaram-se porque ele te traía.

Sónia abanou a cabeça. Por instantes, pensei que estivesse a afastar a minha mão, mas era apenas a negação da minha afirmação. Explicou:

─ Tenho que lhe fazer justiça, até foi muito honesto. Algures num qualquer momento do seu dia-a-dia, ele sentiu-se atraído por uma colega. Acho que deve ter pouco mais de vinte anos. E antes que sucedesse algo entre eles, conversou comigo acerca de já não sentirmos a mesma paixão e que o casamento o estava a sufocar… Enfim, justificações de merda para dizer que queria “comer” a outra gaja… ou outras. E, claro, não queria cometer adultério, daí a separação.

─ Honesto ou não, é preciso ser muito estúpido para abrir mão de ti.

A minha frase foi dita com tal convicção que Sónia me olhou nos olhos com algum espanto. De súbito, senti que poderia ter-me revelado. No entanto, ela limitou-se a colocar a sua mão sobre a minha e a dizer:

─ Tu és um querido.

─ Sou sincero, Sónia. ─ retorqui desviando o olhar para o mar. ─ Tu és uma mulher linda, seja com trinta e seis anos ou cinquenta ou oitenta. Porque a tua maior beleza está naquilo que és e não na tua figura física.

Estás a abusar, pensei, daqui a pouco estás a declarar-te. Porém, não pensei muito nas consequências do rumo da conversa. E esperei que ela me interrogasse onde queria eu chegar com aqueles elogios. Só que a reacção foi diferente.

─ Isso é mesmo o tipo de coisas que se dizem às feias para as fazer sentir melhor. ─ constatou ela, olhando também para o mar.

─ Tu sabes bem que não és feia. ─ argumentei, tornando a olhar para ela. ─ Tu sempre foste linda. Ele não tem noção do que está a perder. Eu conheço-te há vinte e cinco anos e sempre me senti um privilegiado por tudo o que partilhámos, pela nossa amizade, pela nossa cumplicidade. Nunca existiu nem existirá ninguém como tu na minha vida.

Estás mesmo a passar dos limites, insurgiu-se a minha mente contra mim próprio. Estás a um passo de…

─ Foi por isso que nunca casaste? ─ interrogou ela, confrontando o meu olhar com muita seriedade.

Encolhi os ombros sem saber muito bem o que responder. A minha mente assolava-me com ideias e o meu coração batia descompassado. Eu nunca casara porque a única mulher com quem queria casar era ela, a minha Crockett, a minha amiga, o amor da minha vida. Parecia que tinha uma voz dentro de mim que dizia “estás a ir tão longe, já agora diz-lhe tudo”. Engoli em seco e comecei:

─ Nunca casei porque…

─ Mãe! ─ gritou uma voz, interrompendo-me. ─ Mãe! ─ Ouvindo a voz da filha, Sónia desviou imediatamente o olhar para a criança. ─ Estou a ficar com frio.

O Sol já se começava a pôr e a brisa tornara-se num vento mais forte. As pessoas começaram a abandonar o lugar e nós fizemos o mesmo.

Aquela conversa ficou na minha mente como um sino que não parava de tocar. Regressámos a casa de Sónia com Clarinha e não voltámos a tocar no assunto. O dia fora esgotante, principalmente devido à viagem de avião que me obrigara a levantar da cama muito cedo. Pouco depois do jantar, e como Sónia não quisera ajuda para arrumar a louça, eu despedi-me de ambas e fui para a cama. Em todo esse tempo, perguntava-me o que poderia ter acontecido se eu tivesse completado aquela frase. Só que assim que aterrei no colchão, o cansaço não me deixou pensar em mais nada.

 

 

 

 

 

II

As vozes das pessoas na rua acordaram-me a meio da manhã. A princípio não tivera a noção de onde estava, mas rapidamente me lembrei. Levantei-me sentindo o corpo agradecido pelo descanso.

Não havia ninguém em casa. Com total silêncio, pensei que mãe e filha ainda dormissem, mas a porta do seu quarto estava aberta e a cama feita.

Após tomar um banho e vestir-me, aguardei na sala que Sónia voltasse. Como se estivesse a passear numa galeria de arte, observei as fotos espalhadas pela estante, fotos dos pais, dela com o marido, deles com a filha, só da filha, só dela, algumas minhas e num dos cantos a última foto que tirámos juntos, antes da partida dela para os Açores. Tão novos que nós éramos naquela foto, captada por um turista que ia a passar e que simpaticamente correspondeu ao nosso pedido. A foto foi tirada em Belém, com o rio Tejo como cenário, lado a lado, eu com o meu aspecto imberbe e ela linda com o cabelo a esvoaçar ao vento. Na noite daquele dia de finais de Setembro, recordo-me do que chorámos abraçados um ao outro pela separação que aí vinha. Foi um momento inesquecível, nos braços um do outro a lamentar que a nossa vida académica não me tivesse levado para o mesmo lugar que ela. A despedida final foi um beijo sentido dela na minha face e outro meu na dela, olhámos um para o outro com olhos marejados de lágrimas e jurámos que a nossa amizade nunca teria fim. Durante os meses que se seguiram, influenciado pelas cenas dos filmes românticos, eu lamentava não me ter despedido dela com um beijo nos seus lábios, aproveitando o momento fragilizado de ambos e roubando-lhe o beijo como ela me fizera em criança. Contudo, com o passar do tempo, congratulei-me por não o fazer, pois se ela tivesse a mesma reacção que eu, o momento seria estragado e a recordação um embaraço e uma vergonha.

Os meus pensamentos foram interrompidos pela chegada de Sónia. Ao dar de caras comigo ali na sala à sua espera, sorriu-me e abraçou-me com força, dando-me dois beijos. Os seus abraços eram carregados de carinho, apertando os seus braços à volta do meu pescoço durante alguns segundos. Havia uma imensa saudade neles.

Sónia fora levar a filha a casa dos avós logo de manhã, como era hábito, ainda antes de eu acordar. De vestido colorido fresco e havaianas, olhou para mim e disse com sorriso maroto:

─ Espero que debaixo dessas calças tenhas calções de banho. Aqui deves andar sempre preparado para entrar na água.

Pois… Não tinha. Por isso fui mudar de roupa e vestir uns calções, largar os ténis e calçar chinelos.

Contente por me ter ali a partilhar os dias de férias consigo, Sónia foi a minha guia e queria mostrar-me todos os cantos da terra que tanto amava, a ilha do Faial. E para começar, fomos caminhar até ao centro da Horta.

A temperatura era amena e o Sol brilhava no céu azul. Curiosamente, o cume do Pico estava escondido por uma massa de nuvens. Passeámos descontraídos até à zona histórica da cidade e descemos ao porto. O porto da Horta é um lugar mundialmente conhecido, uma vez que é o local favorito para fazer escala nas travessias marítimas entre a América e a Europa. Protegido pelo canal que liga a ilha do Faial à ilha do Pico, a constituição geográfica oferece resguardo a todos quantos navegam naquelas águas.

Recordo-me que descemos uma rua que nos levou a uma rotunda de formato esquisito, onde inúmeros carros se arrumavam meios desordenados. Era nessa zona do porto que atracavam os barcos que faziam o transporte de passageiros para as outras ilhas. Virámos à esquerda e espantei-me com as dezenas e dezenas de veleiros atracados na marina, embarcações dos quatro cantos do Mundo. Sónia conduzia‑me pelas ruas, falando dos sítios, apontando para pontos que queria que eu visse.

O nosso passeio prosseguiu ao longo do porto, onde passámos pelo bar do Peter para beber um café. Este é outro lugar emblemático da Horta, pois não deve haver velejador no globo que não conheça o Peter’s. Lá dentro, o ambiente é semelhante a um bar irlandês, paredes e tecto em madeira e muitas mesas apinhadas de pessoas a falar alto e em vários dialectos. Centenas de mensagens espalham-se pelas paredes, mensagens de pessoas que quiseram deixar a sua marca com algumas palavras sobre a ilha, a cidade, o bar, as gentes ou outra ideia que lhes fosse na mente, quase todas datadas e algumas praticamente do início da fundação do bar.

Continuámos por aquela rua que reparei ter mais duas ou três lojas do Peter’s, destinadas a venda de souvenirs para os turistas. Descemos umas escadas e Sónia mostrou-me a marina onde tanto o chão como os muros estavam pintados com centenas de gravuras que, tal como no bar, os velejadores deixavam à sua passagem. Porém, não estou a falar de mensagens escritas, mas sim de autênticos quadros a cores muito bem pintados e fazendo referência a uma determinada embarcação. Havia casos em que as pinturas eram renovadas a cada nova passagem e essa data era adicionada ao desenho. Sónia chamou a minha atenção para as que considerava mais bonitas e vimos um senhor ajoelhado no chão a pintar uma alusiva ao seu barco que chegara na noite anterior.

O telemóvel de Sónia tocou e nós parámos o passeio junto a um dos extremos do porto. Tentei não dar atenção à conversa, por educação, mas deu para perceber que o telefonema era do seu ex-marido. Fiquei a olhar para o mar e para a ilha do Pico, onde as nuvens começavam a revelar o Piquinho. O tom da conversa era cordial e a voz dela parecia tranquila, querendo revelar distância, mas com um timbre de quem falava com alguém que lhe era muito próximo. Eu sentei-me no muro a ouvir, sentindo um absurdo ciúme por ela falar bem com ele, pois esperava que como casal divorciado eles só discutissem.

Quando terminou, Sónia voltou a guardar o telemóvel e veio sentar-se ao meu lado.

─ Era o teu marido?

─ Ex. ─ corrigiu. ─ Mandou cumprimentos para ti.

─ Para mim? ─ interroguei surpreso. ─ Ele sabe que estou cá?

─ Sim, claro.

Por instantes ficámos a observar as casas da Horta, espalhadas pelas elevações.

─ Vocês parecem continuar a dar-se muito bem. ─ constatei.

─ Porque dizes isso?

─ Pela forma como estavas a falar ao telefone.

Sónia olhou para o chão com o vento a soprar-lhe os cabelos. Pensei que não fosse dizer nada, mas acabou por se justificar, dizendo:

─ Tento dar-me bem com ele por causa da Clarinha. Não quero que ela sinta qualquer ódio entre nós. Mas… Se não fosse ela, nunca mais o queria ver.

─ Ainda gostas dele? ─ questionei, percebendo que a amargura nas suas palavras balançava entre o amor e o ódio.

─ Digo a toda a gente que não. ─ Levou a mão ao cabelo e puxou-o para trás, olhando depois para mim. ─ Mas não é verdade, Ricardo. Não tenho segredos para ti, és o meu confidente desde pequena. Foram cerca de quinze anos… Claro que gosto dele, ainda gosto dele. Mas espero que isso passe rapidamente.

─ E não há possibilidades de voltarem?

─ Não. ─ respondeu com um sorriso irónico. ─ Ele não quer voltar à vida de casado. Quer andar com esta e aquela sem responsabilidades. E de mim já se fartou há muito tempo.

─ Não digas isso. ─ interrompi, acariciando-lhe as costas. ─ Pode ser uma fase…

─ Não, não é. Basta ver pela reacção à tua presença cá. Ele sabe que tu estás em minha casa. Sim, claro, nós somos como irmãos. Só que ele não mostrou qualquer tipo de ciúme.

A última coisa que eu queria era ser irmão dela. E quem me dera que ele tivesse muitas razões para ter ciúmes. Contudo, acabei por argumentar:

─ Se somos como irmãos, porque haveria ele de ter ciúmes?

─ Ó Ricardo, somos como irmãos, mas somos uma mulher e um homem. Ele podia pensar…

─ Ele sabe como é a nossa relação, tonta. Crockett e Tubbs. Somos amigos eternos. Por isso…

─ Por isso, ─ interrompeu. ─ pense o que pensar, o nosso casamento acabou, não tem volta. Mesmo que goste dele, jamais admitiria voltar para um homem que me deixou para andar enrolado com outras.

Eu assenti com a cabeça, concordando com ela.

Sónia voltou a olhar para mim, abriu o sorriso e sugeriu que fossemos até à praia. Deixámos os murais pintados e caminhámos sobre as gravuras, fazendo o percurso inverso. Atravessámos novamente a zona portuária e Sónia guiou-me até ao extremo oposto da cidade da Horta para me mostrar a Baia de Porto Pim, a qual tinha uma bela praia de areia escura e águas muito calmas. A praia ficava no sopé do Monte da Guia, uma pequena montanha a sul da ilha, talvez uma antiga cratera que perdera metade da sua estrutura, o que vista de cima a fazia parecer um quarto crescente.

Percorremos metade da praia e escolhemos um espaço para estender a toalha que ela trouxera consigo. Como eu não tinha uma, ela ofereceu-me metade da sua para eu me sentar. Enquanto tirei a minha t-shirt, Sónia puxou o seu vestido e despiu-o pela cabeça, ficando em biquíni. Ela continuava a ter um corpo curvilíneo, muito elegante, muito sensual, muito excitante. Uma excitação que eu me esforçava por não revelar. A idade não lhe deixara marcas, pelo contrário, ela estava em forma e com belas formas. Nem a gravidez lhe deixara qualquer vestígio. A pele bronzeada fazia sobressair o biquíni roxo com pequenas flores vermelhas, o qual ela ajeitou cuidadosamente como se receasse que ele revelasse algo que não devia. Depois, sentou-se a meu lado e ficámos a olhar o mar da baía.

Durante todo aquele passeio, reparei nos olhares de algumas pessoas quando passávamos. Mesmo ali na praia, uma ou outra pessoa olhava para Sónia com uma expressão estranha. Isso incomodou-me e partilhei esse facto com ela.

─ Não te preocupes. ─ disse ela, sorrindo. ─ São pessoas daqui, pessoas que me conhecem e conhecem o meu ex. A nossa separação não foi propriamente noticiada na televisão. Isto é um meio pequeno, agora vêem-me com outro homem e começam a pensar coisas.

─ Lamento estar a causar isso.

─ Não lamentes, não tem importância. ─ afirmou, dando-me um beijo na face. ─ A opinião deles não me interessa para nada. As pessoas que me são importantes sabem o que realmente se passa. E além disso, a tua presença cá tem sido um óptimo remédio para mim.

Olhei para ela e retribuí-lhe o beijo na face. Fiquei a olhá‑la nos olhos e a pensar em como gostaria de lhe dizer o que sentia. Como não disse nada, ela perguntou o que se passava para a estar a olhar com um sorriso parvo.

─ Não é nada, estava só a olhar para ti. Não imaginas as saudades que tinha de estar assim contigo, sem dar pelo tempo passar, como se nada mais existisse no mundo para além de nós.

─ Velhos tempos… ─ concordou, desviando o olhar.

Permaneci a observar o seu rosto de olhar perdido nas casas no lado oposto da baía. Apreciei cada traço da sua face, a beleza dos seus lábios, o contorno das suas sobrancelhas, a cor dos olhos…

 ─ Quem me dera poder voltar atrás no tempo. ─ confessei, encostando a cabeça no seu ombro.

Sónia repousou a sua cabeça sobre a minha e respondeu:

─ Já me dava por satisfeita se pudesse parar o tempo e ficar aqui contigo eternamente. ─ Levantou a cabeça e moveu‑se de forma a olhar-me novamente. ─ Senti muito a tua falta. Senti muito a falta do amigo que sempre foste para mim.

Sorri-lhe e abracei-a com força e ternura.

─ Não penses nisso, agora. Estou aqui contigo e vamos aproveitar cada minuto da minha estadia no Faial.

Sónia envolveu-me com os seus braços e deixou-se ficar naquele abraço fraternal.

─ Obrigado, Tubbs! Obrigado por tudo o que sempre foste para mim, desde o primeiro dia em que nos conhecemos.

Dei-lhe mais um beijo na nuca, bastante sentido, como se agradecesse o seu agradecimento e ao mesmo tempo a fizesse sentir que eu sentia o mesmo. A forma como falava nas lembranças, na saudade, revelavam o quanto estava fragilizada. Pudesse eu fazer o que me ia no pensamento e envolvê-la ia com todo o meu ser, inundava-a de beijos e amá‑la‑ia como nunca fora amada na sua vida. Porém, sabia que não o podia fazer, não correria o risco de que os meus sentimentos estragassem aquilo que de melhor tinha na minha vida. Afrouxei o abraço e com um tom brincalhão, disse:

─ Bom, deixemo-nos de lamechices e vamos dar um mergulho. Ainda continuas a ser um peixe na água?

─ Claro. ─ confirmou, forçando um sorriso. Levantou-se, puxou-me pela mão e ambos corremos para o mar calmo e mergulhámos juntos.

 

 

 

Nessa noite, Sónia, Clarinha e eu jantámos em casa. A refeição foi uma bela dourada com batatas cozidas. Sónia não esquecera como eu gostava de comer um bom peixe e nessa tarde esmerara-se a assar aquele no forno. Estava delicioso.

─ Amanhã, quero levar-te a conhecer alguns locais da ilha. ─ sugeriu Sónia. ─ Pensei que poderíamos sair cedo e aproveitar bem o dia.

─ Parece-me bem. ─ concordei, sentindo o sabor do peixe fresco bem assado, na boca.

─ Queres vir connosco, Clarinha? ─ convidou a mãe, olhando para a filha que espetava o garfo no peixe com alguma desconfiança.

─ Prefiro ir à praia.

Sónia encolheu os ombros.

─ É natural que prefira brincar com os amigos que acompanhar dois cotas. ─ constatei com um sorriso.

─ Tudo bem. ─ concordou ela com algum lamento. ─ Sendo assim, antes de irmos, deixo-te em casa dos avós.

O jantar prosseguiu, ouvindo-se em fundo o som da televisão com o noticiário da noite. Eu mastiguei o meu peixe, bebi um pouco de vinho e disse:

─ Se tivermos oportunidade, gostava de visitar a ilha do Pico, também. Aliás, gostava de subir a montanha.

─ Olha que não é tarefa simples. ─ alertou Sónia. ─ A subida é bem complicada e dura.

─ Já a subiste?

─ Sim. Antes de a Clara nascer. Mas, não me importo de a voltar a subir contigo.

─ Costuma nevar no Pico?

─ Sim, no Inverno. ─ confirmou Sónia.

─ Eu gostava de ir à neve. ─ interrompeu Clara. ─ Nunca vi neve.

─ Vês quando o topo da ilha está coberto de branco. ─ recordou a mãe. ─ Daqui, vê-se bem a neve no cume.

─ Não é a mesma coisa. ─ argumentei em defesa do desejo da pequena.

Sónia lançou-me um sorriso e retorquiu:

─ Fala o menino “nunca neva no meu aniversário”.

Soltei uma gargalhada, ao ouvir a sua citação.

─ Não esperava que ainda te lembrasses disso.

Completamente confusa com o nosso diálogo, Clara perguntou:

─ Que quer isso dizer?

─ Era uma expressão que o Ricardo usava em miúdo.

Clara olhou para mim, esperando que eu adicionasse uma explicação mais completa. Eu não a decepcionei.

─ Quando eu era criança, mais novo que tu, todos os anos nevava na aldeia onde nasci. Para mim e para os meus amigos, a neve era tão natural como aqui é a chuva. ─ Olhei para o vazio, recordando os tempos em que andava na escola primária. ─ Éramos poucos miúdos na aldeia, mas éramos muito amigos. Quando um fazia anos, a família dele convidava todos os outros para uma festa lá em casa. Só que eu não podia fazer o mesmo porque, quando eu fazia anos, quase todos estavam ausentes. ─ Clara franziu o rosto, estranhando a situação. Eu expliquei. ─ Todos faziam anos no Inverno. Eu era o único que nascera no Verão. Por isso, na altura do meu aniversário, as famílias dos outros estavam ausentes em férias.

─ E o Ricardo achava que se nevasse no aniversário dele, os amigos já não podiam ir de férias e estariam na aldeia para comemorar os anos dele.

Clara sorriu, achando a teoria engraçada.

─ Seja como for, ─ continuei perante o seu olhar atento. ─ quando somos crianças pequenas, criamos as teorias mais complexas. E esta era a minha. Se nevasse no meu aniversário, eles estariam na aldeia. Por isso, tal como a tua mãe lembrou, eu dizia muitas vezes que nunca nevava no meu aniversário.

─ Mas, a mãe conhecia-te nessa altura?

─ Não. Só nos conhecemos mais tarde, no quinto ano. Só que eu nunca larguei essa frase.

─ Sim. Disseste-a muitas vezes à minha frente. ─ recordou Sónia.

─ Claro que com a idade, essa relação perdeu a razão de ser. No entanto, passou a ser uma espécie de grito de inconformismo.

─ Como assim? ─ interrogou Clara, não entendendo o significado de inconformismo.

Sónia esclareceu melhor:

─ Quando o Ricardo via os outros terem sorte e ele não, dizia que nunca nevava no aniversário dele, ou seja, nunca lhe calhava a ele. Era como dizer “nunca tenho sorte”. Percebes?

Clara assentiu com a cabeça.

─ Acho que já não o digo tantas vezes. ─ constatei, pensando quando teria sido a última vez que o dissera.

─ É porque não tens tido falta de neve. ─ afirmou Sónia, piscando-me o olho e sorrindo.

─ Quantidade não significa qualidade.

─ Também neva onde vives? ─ inquiriu Clara, ao ouvir a mãe.

─ Não. A tua mãe está a dizer que sou uma pessoa com sorte.

Sónia levantou-se da mesa e começou a recolher a louça. Eu ajudei-a, tal como a filha que pegou no prato e no copo e colocou perto do lava-louça.

Enquanto a mãe lavava a louça do jantar, Clara sentou‑se no sofá a ver a novela que começara. Eu peguei num pano e fui limpando os pratos que Sónia retirava da água.

─ Não precisas fazer isso.

─ Não custa nada ajudar. Não sou daqueles homens que têm alergia a tarefas da cozinha.

─ O meu ex devia ter. Nunca fez nada de tarefas domésticas em casa. ─ desabafou ela. ─ Só se fosse pôr um prego na parede ou martelar alguma coisa. Sim, isso já era tarefa de macho.

Sorri com a forma sarcástica como ela pintava a situação.

Quando terminámos a parceria de arrumar a louça, Sónia chamou a filha:

─ Clarinha! Beijinho de boa noite ao Ricardo e vai lavar os dentes para ir para a cama.

─ Oh, mãe…

─ Vá lá! Já são horas de ir dormir.

A contragosto, Clara abandonou o sofá e dirigiu-se a mim para me dar dois beijos e desejar uma boa noite, a qual eu retribuí e adicionei um “dorme bem”. A pequena seguiu para a casa de banho para cumprir a ordem da mãe. Quando saiu, a mãe foi ao seu encontro e ambas entraram no quarto ao fundo da casa.

Sozinho na sala, fiquei a olhar para a estante de CDs com a colecção de discos dela. Havia um pouco de tudo, desde o actual aos anos oitenta. Parei num sector que também era especial para mim, a discografia dos Genesis, os quais eu também idolatrara na juventude, principalmente a fase após a saída de Peter Gabriel e total protagonismo de Phil Collins. Penso que foi uma preferência baseada no facto de ter conhecido o grupo quando as músicas surgiram como banda sonora nos episódios do Miami Vice. Mais tarde, aprendi a gostar dos temas mais antigos, dos anos setenta, com a voz do Gabriel em destaque e a do Collins em fundo. Depois da saída de Phil Collins, os Genesis perderam o interesse.

Lembro-me que durante a adolescência, na altura em que me apercebi que estava apaixonado por Sónia, a música que mais ouvia era o Invisible Touch. Devo ter passado os dois discos ao vivo, The Way We Walk, centenas de vezes no leitor, nessa época. A voz do Phil Collins era uma espécie de banda sonora da nossa amizade.

─ Genesis? ─ ouvi a voz de Sónia interrogar atrás de mim, sentindo a sua mão acariciar-me as costas. A minha mente perdera-se de tal forma nas memórias que nem me apercebera que ela regressara à sala. Confirmei que sim. ─ Tive imensa pena de não os ter visto ao vivo, quando vieram a Portugal.

Fora algo que sempre lamentámos, não termos tido possibilidade de ir ao Estádio de Alvalade quando eles actuaram lá no início da década de noventa. Eu consegui colmatar essa lacuna, em 2008, assistindo a um concerto deles em Roma.

─ Tanto que nós ouvíamos os Genesis. ─ recordei.

─ As minhas cassetes duraram até a fita aguentar.

─ Era a música do Crockett e do Tubbs. ─ disse eu como se elas não pudessem pertencer a mais ninguém.

Sónia sentou-se no sofá e convidou-me a sentar a seu lado, assistindo à novela na televisão. Devia ser das poucas coisas antagónicas entre nós, o seu gosto pelas novelas, as quais me eram indiferentes. No entanto, estar ali sentado ao lado dela, com o seu braço colado ao meu, compensava bem ter de suportar a novela. E se fosse só uma… Contei pelo menos três diferentes até perceber que Sónia adormecera com a cabeça repousada no meu ombro.

Tê-la a dormir encostada a mim era daqueles momentos que poderiam durar a eternidade, ainda para mais quando ela se aninhou com a cabeça no meu peito e o seu braço a envolver-me a barriga. Sentia a sua respiração no peito que se pressionava contra mim a cada inspiração, bem como o cheiro perfumado do seu cabelo junto ao meu rosto.

Na televisão continuava a novela. Procurei o comando, mas antes de mudar de canal, uma cena captou a minha atenção. Não me recordo porquê, só sei que nela uma das personagens levava um tiro e morria. Cansado, o sono venceu a minha vontade de alterar o canal.

Quando voltei a acordar, vi a mesma actriz que levara o tiro, novamente viva e com cabelo de cor diferente. Que raio de história, pensei. Porém, percebi que já era outra novela com a maior parte dos actores da anterior. Uma seca.

Pode ser um defeito meu, mas não suporto novelas, aqueles enredos em que do primeiro ao penúltimo episódio os maus fazem a vida negra aos bonzinhos. Vencem sempre até chegar o último episódio em que morrem ou são presos e os bons têm um final feliz. Enfim… Ninguém é capaz de avisar os tipos que inventam estas histórias que a vida é um bocadinho… só um bocadinho, diferente?

Seja como for, esquecendo as novelas, comecei a mudar de canal, procurando algo pelo qual valesse a pena largar o comando da televisão. Fui saltando de programa em programa sem encontrar nada de interessante. Bem podia ir para a cama, mas estava a saber-me bem ter Sónia a dormir tranquilamente sobre o meu peito. Dei por mim a ver o canal das notícias até o sono me vencer novamente.

Não sei quanto tempo estive a dormir no sofá da sala. Sei que acordei com a voz de Clara a chamar a mãe, a qual acordara instantes antes de mim.

─ Não vens para a cama, mãe?

Sónia levantou-se, afastando-se de mim e olhou para o relógio. Meia estremunhada, surpreendeu-se com a hora tardia. De seguida, o seu olhar encontrou o meu e disse:

─ Desculpa! Estiveste aí a suportar-me a dormir sobre ti sem poderes ir para a cama.

─ Não digas isso. Soube-me muito bem ter-te a dormir no meu ombro.

Sónia sorriu, algo envergonhada por se ter deixado adormecer assim. Levantou-se do sofá, pegou na mão da filha e sugeriu:

─ Amanhã podias vir comigo quando eu fosse levar a Clarinha? Assim continuávamos o nosso passeio sem ter de voltar aqui. É muito cedo para ti?

─ Não. Claro que não.

Sónia deu-me um beijo no rosto e despediu-se de mim para ir dormir para a cama.

Quando me deitei, não tinha sono. Típico. Adormecer no sofá e acabar por espertar do sono quando se vai para a cama. Não conseguia tirar da cabeça a imagem de Sónia a dormir no meu peito, a sua postura pacífica e descansada, sonhando… Imaginei como seria se vivêssemos juntos como marido e mulher, a dormir no sofá… Eu a pegar-lhe ao colo com ternura, carregá-la nos braços e deitá-la na cama. A cena mental deixou-me de tal forma inebriado que adormeci e não me recordo de ter pensado em mais nada.

Na manhã seguinte, quando o meu telemóvel me alertou que deveria sair da cama, já a voz de Clara se ouvia na sala. Senti o peso de uma noite pouco dormida no corpo e a pouca vontade de abandonar a colchão. Porém, nenhum minuto mais ali valeria um minuto na companhia de Sónia.

Ao sair do quarto, cumprimentei mãe e filha. Clara via os desenhos animados na televisão e Sónia preparava algumas coisas para fazermos um piquenique ao almoço. Fui tomar um duche rápido e regressei ao quarto.

Pelo vestuário da minha amiga “Crockett”, percebi que o dia iria ser de passeio ao ar livre, talvez a andar pela natureza faialense. Vesti uma camisola de manga curta e umas calças leves, deixando o impermeável na mochila que levaria comigo. Tal como ela me avisara, era sempre bom estar preparado para a chuva que nos Açores poderia aparecer de um momento para o outro. Claro que não me esqueci dos calções de banho por baixo das calças, uma vez que a possibilidade de dar um mergulho ainda era maior que a chuva.

Sónia vestia umas calças leves para andar e uma camisola da mesma marca das calças, a qual se moldava suavemente às formas do seu corpo. Tal como eu, ela calçava botas de caminhar.

Na minha mochila, para além do protector de chuva, levava protector solar, uma garrafa de água, a máquina fotográfica e um casaco para o caso de a temperatura mudar. E na alça da mochila, uma bolsa escondia o meu telemóvel.

A minha anfitriã carregou na sua as mesmas coisas que eu, à excepção da máquina fotográfica. Levava também os alimentos que preparara para o piquenique.

Clara destoava totalmente de nós, pois estava vestida para ir para as piscinas do Varadouro, perto da casa dos avós.

 

 

 

A viagem entre a casa de Sónia e a dos seus pais durou uns dez ou quinze minutos. Durante esse tempo não falei muito, pois a conversa andou à volta das recomendações de mãe para filha.

Enquanto olhava para a estrada, recordava a altura em que vira os pais de Sónia pela última vez, nas vésperas de regressarem ao Faial com a filha, quando ela foi para a Universidade. Não podia condenar o seu ar feliz desse momento, o qual contrastava com a infelicidade que me ia na alma por ver a minha melhor amiga e mulher por quem nutria um amor platónico a partir para longe. Para eles era o regresso à terra natal, a qual haviam deixado para permitir que a filha pudesse obter um nível de ensino superior ao que nesse tempo existia nas ilhas.

Sónia estacionou em frente à casa. Clara saiu do carro ansiosa por encontrar a avó que depois a levaria ao encontro dos amigos na piscina. Eu saí a seguir a Sónia, subindo as escadas a seu lado para rever aquele casal simpático que sempre me tratara com enorme afabilidade.

Tanto a mãe Emília como o pai Alfredo estavam bastante diferentes do dia em que estivera com eles a última vez. No entanto, como eles também apareciam em algumas fotos que ela me enviava, o choque não foi tão grande.

Cumprimentei a mãe que nos esperava à entrada e o pai que nos aguardava na sala. Sempre sorridentes, convidaram‑me a entrar e a sentar-me para conversar um pouco. Perguntaram como eu estava, o quanto estava crescido desde a última vez que me viram, quase fazendo-me sentir um puto que aparece com os primeiros pelos da barba.

Eu fiz-lhes um pequeno resumo da minha vida, desde o estudante até ao cargo profissional que tinha. Não falei muito da minha vida pessoal, apesar de ouvir as perguntas normais de quando casaria, quando teria filhos. Vocês sabem a resposta, se a filha quisesse que eles fossem meus sogros…

─ Vocês têm uma amizade extraordinária. ─ constatou o pai de Sónia. ─ Amigos desde pequenos, tanto tempo afastados e agora parece que nunca se separaram.

─ Olha para a carinha da Sónia. ─ adicionou a sua mãe. ─ Parece que ganhou uma cor nova, desde que o Ricardo chegou.

─ Mãe… ─ interrompeu a filha, envergonhada. ─ Estás a deixar-me sem jeito. O Ricardo é o meu melhor amigo, é natural que me sinta feliz por o ter perto de mim, depois de tantos anos longe.

─ Fez muito bem em vir. ─ elogiou novamente Emília, sorrindo-me. De seguida, olhou para Sónia. ─ Desde que o pai da Clarinha se foi embora, esta rapariga andava com uma cara que fazia doer este coração de mãe.

─ Já chega, mãe. ─ pediu Sónia, colocando-me a mão nas costas, como que num sinal para que fossemos embora. ─ Temos de ir.

─ Jantem connosco, logo. ─ convidou o senhor Alfredo.

Eu olhei para Sónia, procurando uma resposta. Ela fez o mesmo ao olhar para mim.

─ Por mim, parece-me bem.

─ Então fica combinado. ─ atalhou a mãe, ao ouvir a minha resposta.

A Sónia que me acompanhou até ao carro, depois de sairmos da casa, era uma Sónia envergonhada com a denúncia dos pais à importância da minha presença na ilha e de como isso afectava positivamente a filha.

Como não a quis deixar mais constrangida, disse-lhe:

─ Havias de ver a minha cara, antes de chegar aqui. Pensas que és só tu que ganhas cor? Longe de ti, eu pareço um pacote de farinha.

Sónia soltou uma gargalhada, esquecendo o embaraço.

─ Isso é por te veres livre da poluição da grande cidade. ─ retorquiu. ─ Não me esqueci como Lisboa é stressante e poluída.

─ Sim. Isso também. ─ concordei. ─ Mas não penses que a tua companhia não influencia o meu estado de espírito. Sabes bem que sempre foi assim, nos anos todos em que não havia um dia que não nos víssemos.

─ Bons velhos tempos. ─ suspirou ela, iniciando a marcha do carro, retomando o trajecto para o nosso passeio. Voltou a rir provocada pelas lembranças. ─ As tuas namoradas é que não achavam muita graça a ver-me por perto.

Eu sorri sem a contrariar.

Enquanto ela conduzia, eu apreciava a paisagem, vendo os campos verdes com longas linhas de hortênsias azuis, bem floridas. Ao longo da estrada, reparei nos pinos de pedra com as indicações da distância quilométrica entre eles e a cidade da Horta. Conhecem a expressão “todos os caminhos vão dar a Roma”? Pois no Faial bem que se podia dizer que todas as estradas iam dar à Horta. Não era completamente desprovido de lógica, sendo o Faial uma ilha relativamente pequena. No entanto, não pude evitar uma gargalhada quando, num cruzamento da estrada, uma placa indicava para a esquerda a cidade da Horta e para a direita… a cidade da Horta. Era como se a placa avisasse o condutor de que se estava com pressa virava à esquerda, se quisesse fazer tempo ia pela direita e contornava a ilha.

A estrada de dois sentidos que rodeava a ilha parecia uma pista, só perdendo qualidade nos desvios para o interior ou para as zonas costeiras. Porém, salvo algumas excepções, perdia pouca qualidade.

O nosso destino seria a Caldeira, o ponto central da ilha, uma enorme cratera de dois quilómetros de diâmetro e quatrocentos metros de profundidade, resultado de um vulcão extinto.

Outro pormenor que reparei durante o trajecto foram as casas que ainda tinham as marcas do último grande sismo no Faial, em finais do século XX. Algumas estavam mesmo abandonadas, pois não tinham quaisquer condições de habitabilidade.

Sónia conduzia o carro com calma, em sintonia com a passividade do ambiente que nos envolvia.

─ Continuas sozinho? ─ interrogou sem tirar os olhos da estrada.

A pergunta apanhou-me de surpresa, apesar de não ser nada que tivesse problemas em conversar com ela. Algum tempo antes, durante mais uma das nossas conversas ao telefone, eu falara-lhe no fim de mais uma relação, uma advogada do Porto com quem tinha algo parecido com uma relação estável. Durara seis meses…

Depois dela, não me envolvera com mais ninguém. Não porque tivesse ficado afectado, somente não acontecera. E pouco tempo após a rotura, tive conhecimento do divórcio de Sónia e todas as mulheres passaram para segundo plano.

Antes que dissesse o que quer que fosse, o meu telemóvel tocou.

─ Bom dia, Milu!

─ Bom dia, doutor! ─ Mesmo trabalhando comigo nos últimos anos, a simpática senhora não perdia o hábito de me tratar por “doutor”, algo que eu no início lhe pedira que não fizesse, mas que ela recusou por achar que era uma obrigação da função que executava. ─ Peço desculpa por estar a ligar. Não queria incomodá-lo nas suas férias, só que tenho um recado para si.

Milu era a minha secretária, uma senhora de cinquenta e pouco anos que fora transferida na empresa para me secretariar quando eu ocupei o meu cargo. Na altura, receei que viesse a ter uma jovem secretária com mais atributos físicos que profissionais, daquelas que gostam de uma grande proximidade com o chefe. Nunca me arrisquei a misturar trabalho com prazer, mas sabia os riscos inerentes a essa situação. Fiquei muito satisfeito quando conheci Milu, na altura com quase cinquenta anos, com um aspecto muito conservador e uma funcionária bastante competente.

─ Recebi um telefonema do dono de uma galeria de arte, um senhor que disse que o doutor dera o contacto do escritório para combinar uma exposição.

Sabia ao que ela se referia. Uma das minhas grandes paixões é a fotografia, daí que por todo lado por onde viajo, e não são tão poucos locais quanto isso, ande sempre a fotografar. Um amigo de uma amiga minha viu as minhas fotos e convidou-me a expô-las na sua galeria de arte. Como não saberia quando seria oportuno fazer esse evento, dei-lhe o contacto do escritório para que falasse com a minha secretária, a qual tinha uma noção dos meus compromissos melhor que eu. Ele sugerira a Milu no início do Outono e após consultar a agenda, ela queria a minha concordância em relação à data.

Quando desliguei, percebi o sorriso irónico no rosto de Sónia. Espantoso como, após tantos anos longe um do outro, a nossa cumplicidade se mantinha tão activa ao ponto de eu lhe conseguir ler os pensamentos só pelo semblante do seu rosto. Mesmo assim, perguntei:

─ Que se passa?

─ Parece que o teu telemóvel respondeu à minha pergunta. ─ Sorri com gosto, perante a ideia de que Milu pudesse passar por minha namorada. ─ Que foi? Disse alguma piada?

─ Não. A Milu é minha secretária.

─ Ui… Secretária? Imagino como deve ser a tua secretária. ─ ripostou, mantendo a ironia.

─ Não sei se imaginas de facto como ela é. ─ retorqui, bem-disposto. ─ A Milu é uma senhora com idade para ser minha mãe, muito competente e ficaria certamente muito ofendida se soubesse que fazias essa ideia dela. ─ Sónia desviou o olhar para mim. ─ Sim, essa ideia de secretária que vai para a cama com o chefe.

O seu rosto sorridente foi a confirmação de que eu lhe lera os pensamentos na perfeição. Acabou por dizer:

─ Não tens de te justificar…

─ Não me estou a justificar. E, além disso, já te falei dela várias vezes. ─ Olhei para as hortênsias que cercavam a estrada. ─ A Milu é uma grande ajuda a organizar a minha vida profissional.

─ Estavas a falar numa exposição?!

─ Querem fazer uma exposição das minhas fotos numa galeria. ─ expliquei, sem que isso parecesse interessante.

─ Que bom! ─ congratulou ela, mesmo percebendo isso. ─ Mas… Não respondeste à minha pergunta.

─ Sim, Crockett, continuo sozinho. ─ respondi com um ar falsamente enfadado com a questão. Ela riu e deu-me uma palmada na perna. ─ E o teu trabalho? Como está a correr?

─ Bem. ─ Sónia fez uma festa na minha perna, no local onde batera, como se me tivesse magoado. ─ Foi complicado darem-me estes dias de férias. É Verão e é a época com mais turistas, mas o meu patrão compreendeu que eu não estava bem e deixou-me vir com o compromisso de que se houvesse muita procura, eu iria ajudá-los.